por Aldones Nino
Marcela Cantuária, Salão de Mulheres ou 1º Salão de Artes Latino Americana e Caribeño, Óleo acrílica e spray s/ tela, 200 x 300cm, 2022
Há muitos anos, para ser mais exato, há oito anos, eu iniciava uma graduação em história da arte, já possuindo uma formação em filosofia. Nesse momento, mesmo após muitas aulas de estética, eu entrava em um curso aspirando ser alguém que teria conhecimentos específicos para explicar pinturas de séculos passados. Demorou um tempo até que eu pudesse compreender que o que se produz hoje no campo artístico, pode distanciar-se muito de ideais de beleza, que por sua vez, foram criados e articulados de modo a definir os regimes de relação com a arte. Campos aos quais me dedico a compreender e auxiliar, a partir do pensamento e da na análise de estratégias discursivas e de apreciação.
O primeiro passo neste caminho é ao mesmo tempo o mais simples e o mais complexo, pois pauta-se apenas pelo contato e pela abertura ao diálogo com aquilo que se apresenta a nossa frente. E a maior barreira, a meu ver, se constitui por um complexo jogo social e econômico que por sua vez vai definir o primeiro contato e o primeiro olhar ao que se coloca a nossa frente. Nos primeiros anos, a questão inicial que levantava ao visitar exposições em galerias era relacionada ao viés econômico, pois como um estudante que vivia em uma ocupação como único caminho possível para sua formação, a economia não podia deixar de ser a primeira interrogação que se apresentava ao meu olhar (não apenas meu, mais compartilhado por muitos estudantes de Belas Artes, que vinham de famílias historicamente destituídas de poder econômico). Nesse sentido, sempre me custava entender, o alto valor estabelecido para produções que não tinham refletidas em si um grande labor técnico e físico, que por sua vez, refletiria as intensas horas dedicadas a esta produção.
Eu era reacionário? Burro? Acho que não, pois hoje considero que essa busca por preciosismos técnicos, resultava de uma vida inteira apoiado na falácia de que o capital viria associado ao labor físico. A imaginação e a criatividade nunca foram entendidas como caminhos para recompensa. Meu pai se levantou de madrugada seis vezes por semana por mais de trinta anos, recebendo um salário suficiente para alimentar ele e sua família. Uma das primeiras lembranças que tenho, era de me perguntar, como deveria ser não saber ler, pois enquanto uma criança recém alfabetizada, me parecia curioso pensar como o mundo era visto por meu pai, inserido em um universo de palavras, mas sem saber decifrá-las. Me perguntava, como ele sabia pegar o ônibus? O metrô? Numa mente infantil não considerava os números, o som. Hoje vejo como a vida e sua continuidade se pauta por estratégias, que podem superar distintas barreiras. Outro exemplo, aos finais de semana sempre acompanhava um tio meu que era aficionado em filmes VHS, víamos vários filmes juntos, mas nunca tive coragem de perguntar como era ver filmes legendados já que ele também era analfabeto, mas isso não parecia incomodá-lo, sempre me pareceu um pouco mágico, pois para mim a legenda era fundamental para compreensão. Sempre pensava em como devia ser sua mente.
Então, se eu estava assentado em tantos abismos sociais e econômicos, como poderia entender o poder da imaginação, como seria possível pensar além dessas definições? Minhas primeiras reações diante de obras e suas circulações em sistemas de mercado, era uma não compreensão do porquê essa materialidade adquiria tal valoração, quando tecnicamente poderia ser executada por todos. Logo o que levaria a sua existência? Analisar lógicas de mercado por sua vez não me respondiam da maneira que necessitava. Não entendia como a criatividade podia ser valorada, pois nunca havia visto isso em meu universo.
Por sorte, algumas obras me indicaram a possibilidade de construir mundos distintos, isso se deve ao fato de poder conhecer a obra de artistas (que não irei renomear aqui, pois pecaria pela falta), que em suas complexidades tentavam pensar nas lacunas, nos abismos sociais e nas distancias econômicas. Produções que me fizeram ver que, ainda que em uma complexa cadeia de relações, outras histórias pautadas pela falta, pela necessidade e pelo reconhecimento também podiam ser articuladas, como importantes produções culturais que se formulam pela transparência, evidenciando a desigualdade do mundo que habitamos. A arte poderia ser bonita, mas não era isso que importava mais. Aquela beleza que almejava encontrar em obras, que se distanciavam por séculos de meu presente, já não faziam sentido. E ao final, nem eram tão bonitas quando me detinha por mais tempo. Era só mais um reflexo da colonização mental que moldava meu olhar.
Cada momento histórico terá seus artistas, com suas aspirações, suas necessidades, e no meio dessa multiplicidade caminhos muito díspares podem surgir, e isso enriquece o mergulho em poéticas particulares. Ainda que lugares sociais não necessitem ser a base de poéticas, eles sempre estiveram ali, apenas não sendo evidenciados. Pouco a pouco fui vendo como esses questionamentos que rondavam minha mente, que já havia atravessado graduação e pós-graduação, era ainda mais gritante em muitas pessoas que constituíam meus grupos de relação. Não falo da formação universitária como critério de distinção, mas sim como um constante alerta, pois se para mim ainda era difícil compreender determinadas questões, para meus pais, meus avós, meus tios, e meus amigos, certamente seria ainda mais, já que as ferramentas que eu havia adquirido ao longo destas formações ainda não pareciam suficientes para sanar esses incômodos que o campo da arte me apresentava. Talvez fosse mais fácil pensar com a produção artística a arte de séculos passados, pois a passagem do tempo era algo acessível a minha mentalidade, e isso podia justificar a salvaguarda e preciosidade de tais produções. Assim, compreender antiguidades, como algo passível de destaque era mais fácil, pois como nossas avós, o tempo adiciona camadas de respeito. E respeitar os mais velhos sempre foi ordem lá em casa.
Não me interessei pelas argumentações pautadas por posicionamentos decoloniais por um interesse desprendido e acadêmico, mas era o que fazia sentido para mim, e parecia mais real e próximo do que eu pensava enquanto mundo e produção poética. Foi libertador poder perceber, pouco a pouco, como essa cadeira de hierarquias e canonizações não necessitavam sempre fazer sentido, já que não eram incólumes aos questionamentos que sempre rondavam minha mente, e isso me possibilitou continuar.
Como um quebra cabeça, vários textos podiam colaborar com meus interesses, e com as imagens que queria constituir. A desordenação, a mudança, e a transmutação podia ser encontradas em várias partes, mesmo autores canônicos, já haviam percebido que a mutabilidade é imparável. Me encantava passagens que desviavam (ainda que ligeiramente) em autores canônicos da história da arte como o alemão Hans Belting, que alerta para a fragilidade de grilhões historiográficos quando diz:
Aquilo que a disciplina história da arte, com grande esforço, tinha canonizado - a ordem ideal, onde tudo obedece às regras da história da arte – a arte contemporânea tende a descanonizar. Este sistema de hierarquia e classificação histórica está sendo invadida por artistas, que agora apropriam-se do passado, sem se preocupar em justificar a sua reinterpretação sem o discurso ordenado de história da arte.
Hans Belting, O fim da história da arte, 1987, p.61.
Ou até mesmo Immanuel Wallerstein que realiza uma ode a transição em seu livro “O Universalismo Europeu”, quando decreta o fim deste modo uníssono de entender o mundo e as relações que podem ser originadas dele. Uma possibilidade não mais pautada pela falácia da universalidade. O que nos tiraria de um lugar confortável, erigido sob o desconforto de muitos outros. E entender essas alternativas não é apenas uma questão teórica, mas é também uma escolha ética, abrir-se ao diálogo quando este é possível. Este historiador alemão diz:
Estamos no fim de uma época longa que pode ser chamada por vários nomes. Um nome adequado seria época do universalismo europeu. Estamos passando para uma época posterior. [...] Assim, devemos todos persistir na tentativa de analisar o sistema-mundo em sua época de transição, esclarecer as alternativas disponíveis e, portanto, as escolhas morais que teremos de fazer e, finalmente, lançar luz sobre os caminhos políticos que desejamos seguir.
Immanuel Wallerstein. O Universalismo Europeu, 2007, p. 124.
Quando este texto começou a ser escrito, não queria trazer nenhum tipo de referência, mas no decorrer do tempo, logo pensei que já que existe essa possibilidade de aumentar o diálogo por que não fazer? São dois autores alemães, que foram importantes para mim, exatamente como meus primeiros caminhos de abertura frente à uma outra ordem de discurso. Então, ainda que venham do norte, foram a gênese desse desvio para uma trajetória especifica que fui trilhando, mas que logo se potencializou ao encontrar interlocuções com Glória Andalzua, Jota Mombaça e Lélia Gonzalez, pois como alerta Silvia Rivera Cusicanqui, o desafio de uma nova autonomia reside em construir laços que nos permitam romper os vínculos com a academia do norte global, entendido aqui para muito além de uma posição geográfica, e sim como um pacto marcado pela semelhança e concordância estrutural. Construir um diálogo entre nós é urgente, afirmando assim nossos laços com as correntes teóricas de Asia e de África e enfrentando os projetos hegemônicos em prol de uma possibilidade de manutenção de convicções ancestrais. Mas isso já é algo que venho construindo ao longo dos últimos anos, e não preciso me preocupar aqui, não agora.
Esse texto tinha esse interesse, de abordar um pouco de meu percurso e talvez da maior lição que eu possa ter aprendido junto aos artistas que me convidaram a ver a história de outras maneiras, onde grupos sociais que estavam distantes pudessem estar próximos. A curadoria auxilia nesse sentido, pois trabalhar junto a comunicação, entre obras e públicos, solicita uma grande responsabilidade, pois esse contato pode ser um primeiro de muitos, ou o último. E espero poder contribuir com essas ampliações, com a construção de pontes, onde a imaginação seja possível, onde o desejo possa habitar. Onde a economia não se sobreponha ao sonho, reconhecendo que para que o sono seja confortável o corpo necessite sanar seus apetites mais básicos. A arte não dará soluções, mas hoje reconheço que ela pode contribuir com uma ampliação do entendimento.
É importante ressaltar que não é mais sobre beleza, ainda que possa ser. Já que a beleza pode estar em distintos lugares, até onde menos imaginamos. Inclusive em uma obra de arte.
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