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Foto do escritora palavra solta

O arquétipo da Bruxa nos mitos e no Cinema

por Maria Cabianca



Cena de A maldição do demônio, de Mario Bava (1960)



1. A bruxa nos contos e histórias tradicionais


Ela é má, velha, astuta, feia e vive numa cabana entocada no bosque. Conhece a cura pelas ervas e fala línguas animais. Quando não o próprio demônio encarnado é seu elo terreno. Em linhas gerais, eis a descrição da personagem Bruxa nos contos de fadas e histórias tradicionais, uma figura unidimensional cuja psique revela, no limite, pecados capitais com intenções diabólicas. Não há contraste entre caracterização e a verdadeira personalidade dessa personagem. Em Rapunzel, João e Maria ou Branca de Neve, o que parece, é.


A figura clássica da Bruxa tem sido um veículo para a “elaboração de regras de pensamento e condutas do imaginário que reforçam a subserviência das mulheres”[1]. Isto porque, ao estabelecer e reforçar uma personagem feminina que inspira temor às crianças e domestica mulheres, os contos de fadas cumprem sua função moralizante ao mesmo tempo em que mitificam e desistoricizam a mulher desviante da Idade Média, transformando vítima em algoz.


Há algo de cômico em sustentar que a grande ameaça a uma sociedade inteira é a velha solitária que vive no bosque, mas a História comprova uma certa tendência humana em buscar bodes expiatórios para males coletivos. Se “o inferno são os outros”[2], na Idade Média ele era mulher e sofreu todo o tipo de cercamento, da terra comum que residia e subsistia até um cercamento corporal – pela associação de seus saberes e práticas com o imaginário nefasto concebido pelo puritanismo católico europeu.


2. O extermínio feminino e a transmissão da figura Bruxa


Uma passagem singular da historiografia contemporânea é oferecer uma fresta do que era preciso para ser condenada durante essa campanha de extermínio que teve seu auge entre os séculos XVII e XVIII, e que ficou conhecida como “caça às bruxas''. Afagar e falar com animais, portar um pilão em casa, pesar menos que uma bíblia (na época, algo em torno de 80kg) ou aparecer nos sonhos alheios[3] eram alguns pré-requisitos notáveis para um processo que levou entre 35 mil e 100 mil mulheres à morte pelas mãos do Estado e da Igreja.[4]


“Por meio da caça às bruxas, um novo código social e ético foi imposto, e isso tornou qualquer fonte de poder independente do Estado e da Igreja suspeita de diabolismo e provocou medo do inferno – o medo do mal absoluto sobre a terra. O fato de ter sido comumente assumido que a personificação do diabo era uma mulher teve profundas consequências para a condição das mulheres no mundo capitalista que a caça às bruxas ajudou a construir. Dividiu as mulheres. Ensinou a elas que, ao se tornarem cúmplices da guerra contra as ‘bruxas’ e aceitarem a liderança dos homens quanto a isso, obteriam a proteção que as salvaria do carrasco ou da fogueira. Ensinou-as, acima de tudo, a aceitar o lugar a elas designado no desenvolvimento da sociedade capitalista, pois, uma vez que fosse aceito que poderiam se tornar servas do diabo, a suspeita de diabolismo acompanharia a mulher por todos os instantes de sua vida.”[5]


A campanha de marketing empreendida pela Igreja Católica de endemonizar mulheres curandeiras, parteiras e ativas socialmente foi bem-sucedida durante o período de acumulação primitiva do capital. E continuou viva pelos esforços arquetípicos dos contos, mitos e posteriormente pela difusão em massa pela indústria cultural, com destaque para a atuação do Cinema.


“As histórias chegaram até nós, portanto, nas suas versões ‘oficiais’ (particularmente, as de Perrault e dos Grimm), carregadas de valores próprios à época e ao contexto social de quem as escreveu, e, não obstante, sendo consideradas como produções universais e atemporais. Os valores e conceitos trazidos nos contos aparecem como naturais e inerentes à humanidade. Os contos funcionaram, então, como propagadores de interesses dos mais diversos, como por exemplo: as ideias da virtuosidade da riqueza, da passividade, do conformismo.”[6]


3. O Cinema faz seus usos


Se o puritanismo europeu e os cercamentos nos oferecem algumas chaves para compreendermos o processo de mitificação da campesina medieval na figura da Bruxa, podemos sondar como o tratamento dado a essa figura foi sendo modulado ao discurso da ideologia patriarcal vigente, ao longo de décadas, pelo Cinema.


A imagética medieval costuma ser mantida, com a presença de maçãs, cabanas, pilões, sabás, chapéus, mãos que enfeitiçam, rituais místicos, associação com animais falantes e manipulação de ervas. Um dos mais antigos filmes a retratar bruxas, O mágico de Oz (1939), traz uma dicotomia explícita através de duas bruxas, uma má e outra boa. Não associa nenhuma delas ao demoníaco, mas estabelece a distinção entre o bem e o mal em ligação direta com a aparência de cada uma ("a feiura pressupõe a maldade"), reforçando o culto à feminilidade.


Quando confinar o interesse das mulheres aos assuntos estéticos, domésticos ou familiares já não era o espírito do tempo, os anos 60 trouxeram mudanças. Em uma espécie de resposta às ideias feministas de libertação que começavam a entrar em cena, A Feiticeira (série que foi ao ar entre 64 e 72) traz uma protagonista cujo grande conflito reside em renunciar ou não aos seus poderes em prol da família.


Nós dissemos libertação, eles trouxeram o liberalismo: aliada à propaganda da "mulher liberada", os anos 80 resgataram a figura da bruxa como a mulher que sabe gozar. Em Elvira (1988) – filme cuja protagonista marcou o imaginário sexual de várias gerações – o ímpeto sexual da personagem é visto como pecaminoso e impuro, tendo relação direta com o Anticristo. Não é de se admirar que a mesma década tenha visto a ascensão da indústria pornográfica através da tecnologia home video, a mesma indústria que "libertou" os corpos das mulheres – contanto que estivessem a serviço do prazer masculino.


Após a queda do muro de Berlim, em 1989, o mundo ocidental atravessou os anos 90 sob os ideais do triunfante neoliberalismo. Naquela época, o audiovisual passou a retratar a bruxaria como um estilo de vida, uma excentricidade até divertida. Um culto não mais a satã, mas ao individualismo, como na série Buffy – A Caça-Vampiros (1997-2003) e no filme Jovens Bruxas (1996).


O grande último lançamento do gênero é A Bruxa (2015). O filme traz a história de Thomasin, uma adolescente que é expulsa de um vilarejo inglês com toda a sua família durante o século XVII e, após uma série de novas tragédias, passa a ser percebida como a bruxa portadora do mal pelos seus próprios pais e irmãos.


[Alerta de spoiler a seguir]


Recepcionado como um manifesto feminista por parte da crítica cinematográfica, o filme acompanha a adesão de uma campesina a um título que não a pertencia, mas que mostrou-se como "a única saída possível" diante do desmantelamento de seu mundo comum. Há quem enxergue nesta trajetória um hino pelo empoderamento feminino[7], quando o que fica evidente é a falta de poder de escolha sendo retratado como processo emancipatório. Como se trocar um mal (uma família puritana numa sociedade medieval) pelo outro (o pacto satânico) diante de uma total falta de outras perspectivas pudesse ser entendido como uma "escolha", em primeiro lugar.


Qualquer paralelo com o atual discurso neoliberal, e muitas vezes bizarramente defendido pela esquerda dita progressista, de que "trabalho sexual é trabalho!" não é mera coincidência.[8]


Você não era bruxa, mas tanto te disseram assim, que agora você é. Também não é puta, mas se puder ter a ilusão de alguma autonomia diante de uma narrativa social que não almeja o fim da crise, mas a sua gestão através de políticas de precarização, então seja. Como é bela a nossa falta de escolhas!


Em cada um destes filmes é mantida a seguinte regra: é mais plausível imaginar que o demônio pode ser convocado do que o fim de uma sociedade, real ou imaginária, que limita as possibilidades do que pode uma mulher para além dos códigos estabelecidos.


Agradecimentos a Cauê Teles e Layla Loli pela interlocução e bibliografia.


Notas


[1] Bruxas e contos de fada: mitos e representações, de Eliana Calado (UFPB), 2003. | link

[2] Fala da peça Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre, 1945.

[3] Aventuras na História: Estes eram os 11 sinais de que alguém era uma bruxa, 2019. | link

[4] Aventuras na História: Bruxas, hecatombe e histeria, 2019. | link

[5] Mulheres e caça às bruxas, de Silvia Federici, pág. 57, Ed. Boitempo, 2018. | link PDF

[6] Bruxas e contos de fadas: mitos e representações, de Eliana Calado (UFPB), 2003. | link PDF

[7] The Witch Is Sinister, Smart, and Wildly Feminist, The Wired, 2016. | link

[8] Prostitutas, feministas e 'influencers', El País, 2021 | link


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