por Flávio Morgado
A redenção de Cã, óleo s/ tela, 199 X 166cm. Modesto Brocos, 1895
A primeira vez que ouvi falar sobre o mito de Cã, eu ainda estava na universidade. Lá pelos idos de 2011, o grito fascista ainda era um mero rumor, e o então deputado federal Marcos Feliciano, da bancada evangélica, resolveu justificar a desigualdade racial nessa parábola do Antigo Testamento. Diz assim, em Gênesis 9:20, na Bíblia:
Bebendo do vinho, embriagou-se e achou-se nu dentro da sua tenda. Cã, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai, e contou a seus dois irmãos que estavam fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e, andando virados para trás, cobriram a nudez de seu pai; tiveram virados os seus rostos, e não viram a nudez de seu pai.
Despertando Noé do seu vinho, soube o que seu filho mais moço lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; Servo dos servos será de seus irmãos. E acrescentou: Bendito seja Jeová, o Deus de Sem; E seja-lhes Canaã por servo.
Dilate Deus a Jafé, E habite Jafé nas tendas de Sem; E seja-lhes Canaã por servo.
Por não saber guardar o valor do pudor, Cã é amaldiçoado pelo próprio pai a se tornar servo dos servos, o povo escravo. E ainda que não tivesse qualquer menção aos povos africanos, era nessa premissa que a escravagista Igreja Católica dos últimos quatro séculos iria justificar, teologicamente, o processo mais vexativo da humanidade.
Tardiamente terminou a escravidão, e também passou o tempo dessa Igreja, que buscou se redimir, mas viu seus argumentos mais racistas e violentos serem acolhidos pelo medievalismo das igrejas neopentecostais em pleno século XXI. Aparentemente, a produção do nosso ódio é sempre lucrativa.
Naquele 2011, com uma universidade enegrecendo, a fala do deputado logo foi problematizada, repudiada em uma aula de escravidão no Brasil com um professor negro, Flávio Gomes, talvez um dos maiores intelectuais desse país. Nesta aula, também veria pela primeira vez a tela de Modesto Brocos.
“A redenção de Cam” é uma pintura de 1895 do pintor espanhol que viveu boa parte da sua vida no Brasil. Na pintura, uma cena exemplar de família, ou um retrato do branqueamento social: a avó negra, talvez viúva ou mãe solteira, mas capaz de miscigenar e tornar a filha parda, que por sua vez mantém a boa tradição da saga ao branco, engravida de um imigrante europeu e, finalmente, pare um bebê alvo – um doce e redimido Cã.
Essa tela é um projeto. Porque em 1895, ainda que não se possa ter alguma informação ou juízo sobre um eventual preconceito declarado do pintor, essa tela, premiada no Salão Nacional de Belas-Artes daquele ano, aponta para um país possível à burguesia republicana envergonhada com a escravidão. A mesma burguesia, que representada por seu ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, em 1890, mandaria queimar todos os arquivos e papéis referentes ao período da escravidão no Brasil. À risca de apagar esse borrão da nossa história, Ruy Barbosa é daqueles que crê que se não tem prova, não tem crime. É um apagamento completo e incomensurável. E o problema desses arquivos de silêncio na História, é que não elaborados, tornam-se gritos incontornáveis.
Lembro que na aula do professor Flávio Gomes, após uma intensa e alongada discussão sobre essa condição, ele completava: “quando tornarem-se professores, mostrem essa imagem na sala de aula e os alunos darão a aula sobre o racismo”.
Quando segui o conselho alguns anos depois, se já não bastasse um não-estranhamento, além da narrativa do branqueamento, por alguns minutos eu tinha que justificar a matriarca negra – de imediato, vista como a empregada. Para eles, era uma foto normal de família. Tenho certeza que nenhum deles agrediu diretamente uma pessoa negra sob a justificativa de sua cor, mas todos eles gritaram: “a empregada!”
O jantar, Jean-Baptiste Debret, óleo s/ tela, 1839
Em novembro de 2020, o Ministério do Trabalho pôs fim a um cativeiro de 38 anos da mineira Madalena Gordiano. Atravessando três décadas de escravidão sob o véu do nosso cinismo, é uma das histórias mais tristes que conheço.
Aos seis anos, já moradora de rua, Madalena que pedia esmolas na região de Patos de Minas, no estado de Minas Gerais, parou na porta da família Milagres Rigueira. A matriarca, Maria das Graças, propõe alimentação e teto para a menina em troca de “ajudas na casa”. Começaria ali a saga de seu cativeiro, que nunca teve qualquer remuneração reconhecida (Madalena recebia entre 100 e 200 reais, sem uma frequência estabelecida), obrigou a abandonar seus estudos e tornou sua vida uma propriedade da família Milagres Rigueira.
Madalena dormia em um quarto de aproximadamente dois metros quadrados, sem janela. Não estava autorizada a comer a mesma comida da família e durante toda infância não recebeu qualquer trato familiar. A família não vivia isolada, vivia como uma família normal, e se durante todos esses anos não questionamos que uma menina de 10 ou 12 anos servisse à uma família e não fosse sua filha, é porque a essa tela consentíamos: é a empregada.
E a um ofício tão íntimo à escravidão, guardamos tanto pudor. Quantos pecados por baixo de “ela é como se fosse da família”? Uma afetividade sintomática, na medida em que ela se coloca como uma chave possível perante uma exploração tão gritante, e mais ainda quando ela se assume descartável, em seu quarto 2x2, sem seu salário mínimo e suas jornadas inconcebíveis. A crença de que o trabalho doméstico é uma forma de ajudar pessoas mais necessitadas, quando já se parte da premissa de que não é possível criar condições iguais, é de um cinismo civilizatório tão grande quanto quem compra, estupra e açoita em praça pública em nome da salvação da alma de um cativo no século XVIII. Não incorro num exagero retórico: sempre que falamos de abismos entre as classes, estamos falando sobre a hierarquia no direito à vida.
Madalena é libertada após 38 anos de escravidão. Reprodução: Fantástico/TV Globo
O caso de Madalena escancara absurdos. Quando não mais poderia servir à matriarca, Madalena foi cedida ao filho mais velho. Ocuparia a mesma função cativa. O uso de sua vida e de seu corpo, marcados por uma privação total, chegava a perversões como arranjar um casamento com um tio doente e pensionista da Segunda Guerra para abocanhar uma pensão de mais de oito mil reais. Era um projeto: a pensão bancaria a faculdade particular de medicina da neta da matriarca - uma doce e redimida Cã.
Madalena só seria “descoberta” após dois anos de bilhetes nas portas da vizinhança, muitas vezes pedindo produtos de higiene pessoal ou biscoito. Só depois desse primeiro atestado de que o Doutor Rigueira era um “pão duro” (a burguesia adora mediar caridades), que a vizinhança se deu conta de que há dois metros o Brasil vivia em 1750.
Libertada, Madalena passou a viver em um abrigo destinado a mulheres que sofreram algum tipo de violência, hoje recebe integralmente sua pensão e já pôde ter contato com a sua família. Passará por um programa de ressocialização e receberá assistência jurídica da Clínica de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O processo segue na fase de inquérito no Ministério Público do Trabalho.
Madalena confraterniza com suas novas colegas. Reprodução: Fantástico/TV Globo
A família Milagres Rigueira, enquanto foge da cidade com medo do linchamento, aparece constrangida nas nossas relações trabalhistas. No antipetismo que germinou desse ódio da classe média à PEC das Domésticas. Da eleição de um racismo estatal como resposta aos catorze anos de um início de protagonismo contra os outros trezentos de violência e acomodação. O descompasso que foi questionar esse “normal”. O absurdo que significa despudorar todo esse racismo, e a fatura que esse golpe ressentido nos cobra. À nudez desse Brasil, somos amaldiçoados a esse silêncio que não se dilui. E arde.
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P.s.: Ao terminar esse texto, acabei me dando conta de que caio em mais uma artimanha da semiótica bolsonarista. Quando se inicia o ano e a Revista é reformulada, trazendo todo um novo gás e a possibilidade de propor pensamento, cá estamos: às avessas com nosso retrocesso, narrando um caso de escravidão moderna em pleno século XXI. Esse estratagema, essa aposta no absurdo, reduzindo o debate público à urgência de denunciar suas crueldades é uma vitória do fascismo.
Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 2021
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