por Juliana Thiré de Negreiros
Na segunda metade do século XIX, no Rio de Janeiro, já bebia-se até não poder mais. Tinha gente de toda parte do mundo trabalhando nos grandes teatros, e os gêneros ligeiros como a mágica, opereta e revista eram os preferidos da cidade. Existiu uma outra camada do teatro ligeiro dessa época que vem sendo cada vez mais olhada pela perspectiva da cena expandida. É o caso do que acontecia em pequenos palcos da cidade dentro de estabelecimentos pra consumo de bebida, batizados de café-concerto, cabaré e chope-berrante.
Quase não há registro do que acontecia em termos de linguagem cênica nesses espaços. Cruzando pesquisas publicadas de distintas áreas de conhecimento e outros materiais, batendo cabeça e reorganizando informações, pude ter de início uma noção da importância de uma dessas casas pra memória cultural da cidade.
Oposto aos cafés-concerto e mais tarde os cabarés, que tinham fetiche no estilo europeu, os chopes-berrantes eram o palco da expressão cênica singular e inovadora da população proletária, negra, indígena, e de mais uma grande sorte de gente que tentava vender sua presença e expressão na nova e agitada cultura urbana. Existiram pelo menos entre as décadas de 1850 e 1920, tendo o auge no fim do século com a proliferação das casas culturais da metrópole.
Seu ambiente era minúsculo, ruidoso, “acanalhado”, “algo triste mas vigorosamente popular” (Tinhorão). Pagava-se uma taxa pra consumo de cerveja e assistia-se ao programa da noite: artistas baratos que ofereciam experimentações satíricas, canções, espetáculos curtos estruturados, quadros isolados variados e paródias de outros espetáculos, contratados pra atrair fregueses e agitar o babado.
O público era heterogêneo, pobre na vida da cidade, boêmio, interessado, trabalhador, andarilho, artista e intelectual - no chope-berrante a gente que subia ao palquinho era a mesma e tão variada quanto a plateia. A prata da casa era a performance da cançoneta.
Também chamada de cena cômica, a cançoneta musicalmente mesclava lundus, modinhas, maxixe e chansonnette francesa. Seu barato enquanto cena era ser dita, cantada e comentada pelos atores-cantores-dançarinos e atrizes-cantoras-dançarinas que revelavam outros sentidos das letras, numa criação e experimentação constante de tipos e recursos interpretativos.
Em relação direta com a plateia, cheias de jogos de linguagem de corpo, voz e verbo e associadas às inovações rítmicas, essas artistas (maioria mulheres) berrantes e provocadoras, encantavam e desafiavam os modos de convívio social da época. Por vezes eram descobertas pelos empresários do teatro de revista e, se não eram levadas aos seus palcos, inspiravam as caricaturas grotescas e racistas que o gênero costumava exibir (“a mulata maxixeira”, por exemplo).
Cançonetistas, não só nos chopes-berrantes, eram alvo da crítica especializada nos critérios do canto lírico e da dramaturgia. Destacavam-se pela performance transgressora e profunda em termos de presença, tensionando e gozando as inquietações do tempo e imprimindo sua marca pessoal, conectando cena e plateia para valorizar suas leituras de mundo. De Chocolat, que fundaria mais tarde a Companhia Negra de Revistas, começou sua carreira de ator, improvisador e cançonetista nos chopes-berrantes.
No livro “O Rio de Janeiro do meu tempo”, Luís Edmundo retrata os chopes-berrantes na virada do século como tendo sempre “um mestiço” “batendo” no piano uma mistura de canções escravas com partituras de salão, e que as cançonetistas por vezes “quadragenárias”, “de peitarra vasta e enorme” “atacavam” truculentas as cançonetas, berrando sobre o estradote, anunciadas por um papel borrado de nanquim que continha o programa da noite.
Pelo menos durante parte de sua existência, o chope-berrante foi o principal local de apresentação das mulheres negras que se dedicavam à atividade artística cênica no Rio. Também foi o principal local de emprego pra músicos locais e de concentração e negociação de compositores e membros da indústria do disco e do comércio do entretenimento.
O chope-berrante atuou nas principais transformações musicais do encontro dos gêneros africanos, indígenas e europeus da cidade do Rio até o samba. Saem dos chopes-berrantes os primeiros pianeiros - pianistas especializados na execução das músicas ligeiras, também considerados inferiores pela crítica especializada.
É de 2005 pra cá que se tem o emprego superficial do termo chope-berrante na literatura científica, em diferentes universidades do Brasil, em parágrafos que assuntam desde a primeira incidência da palavra “arranjo” no nosso vocabulário à vivências de mulheres negras na segunda metade do rio oitocentista.
Houveram chopes-berrantes (também apelidados de "cabarés tupiniquins" em algum momento) na Rua do Lavradio, na Rua da Carioca e no Passeio Público no século XIX e, no século XX, na Avenida Central (Rio Branco) e na Lapa.
Escrever esse texto só foi possível porque atravessei os últimos meses como bolsista da PROPGPI (Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação) da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) com a pesquisa Pistas para a linguagem do cabaré no Rio Antigo: o chope-berrante através do projeto Teatro-Cabaré: poéticas, estéticas e pedagogias.
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