por Italo Diblasi
No inferno que estamos vivendo, a alegria – ou o que nos acostumamos a chamar assim – acaba parecendo um enigma terrível: por um lado, o dever de procurá-la beira a tolice, um espinozismo saturado e produtivista (uma má leitura de uma ideia importante), assim como a descrença com relação a ela acaba deixando entrever, pelo lado de dentro, um niilismo tristemente anacrônico. Diante desse dilema, tenho apostado na ideia do acidente, nas coisas que acidentalmente se projetam para além de nós e nos tomam como uma praga, um vírus, um antídoto débil e brilhante: uma beleza. As coisas acidentadas, isto é, aquelas que acabam revestidas da qualidade acidental da importância são a tarefa da poesia, de uma poesia, que segue viva à revelia do horror, como nós. O livro que o Heyk Pimenta acaba de publicar é, em muitos sentidos, a renovação desses votos, e por isso gostaria de arriscar algumas ideias em torno dele.
Para começo de conversa, o Coração Fodido é um livro plenamente acidentado, no sentido mais nobre do termo. Grave (ainda que eventualmente engraçado), lírico no limite da negação do próprio lirismo, isto é: sua reafirmação. A palavra de ordem é combustível, "você chama paixão de gasolina", o elemento que bota um sistema em atividade e o carrega em frente, duvidando do mundo, qualificando o mundo, destacando no mundo suas qualidades terrivelmente incisivas e, por isso mesmo, fundamentais: matéria, memória, paixão: uma ou várias fotografias: um pai, um filho, um carro ultrapassado: a cidade se desfazendo como um sonho não necessariamente bom. Como um sonho não necessariamente ruim. Um coração puxando a corda para o lado de lá; investigando esse "lá" e denunciando-o até, e, talvez, por isso mesmo, fodido. Uma poesia mesmo.
Se elejo como plataforma de leitura do livro temas como matéria, memória e paixão, é porque tais questões comparecem nos poemas mais do que como eixos temáticos: são linhas de força. E que vão sendo tecidas e cruzadas à medida em que constituem esse coração, encontrando-se no fundo dele, como uma coisa única, residual, feito borra de café. E daí que sejam justamente as mini narrativas sobre o processo de moer café que delimitem as passagens dentro do livro, mais como pretexto lírico (tutorial ou alegoria mais ou menos absurda) do que como artifício editorial. O moedor que é casa, estômago, instrumento. Ponte que lança o livro à vida e o traz de volta, aparafusado à parede. Que parede? O tempo é de ruínas, demolição. E se estas palavras não aparecem sequer uma vez ao longo do livro é que ele parece querer, antes, erigir – mesmo que a partir dos resquícios – algo que não me arrisco a nomear, mas que é importante. Tanto que os poemas estão o tempo todo se havendo com a trajetória do poeta, coletando os rastros dela e que compõem o coração que dá nome ao livro, e que está aqui, agora. "eu aguento porra eu aguento".
Quando pensado em relação ao seu último livro de maior fôlego, A serpentina nunca se desenrola até o fim (7 letras, 2015), Coração Fodido parece um irmão que dropou a escola e saiu para passear. Um livro musical, sonoro, que vai se derramando, vazando óleo, pintando o percurso com as cores do tal acidente. Tons obtusos, é verdade. Fechadas e estridentes a um só tempo, como se isso fosse possível. Mas não poderia ser diferente. A poesia – esta poesia – nunca se nutriu das possibilidades, interessa-se, antes, por problemas mais... difíceis. E se digo isso é porque há, no Coração Fodido, um testemunho intensivo do percurso, menos preocupado com a extensão e a duração, ainda que elas compareçam, em segundo plano, isto é, em seu devido lugar, abrindo espaço para o núcleo secreto das coisas, o núcleo de que precisamos o tempo inteiro ser relembrados, porque vai se solapando, sendo solapado, deixado de lado nessa vida brutal que não cessa de nos derrubar. "É muito difícil acordar do campo arrasado da tarde". A poesia que vai contra isso é a poesia que encontrei neste livro: o coração que ainda temos.
E que não haja mal-entendido: nada disso informa o que quer que seja sobre o livro anterior – porque tudo já estava lá, como sempre esteve – ou o anterior àquele, ou o próximo, que já conhecemos um pouco (mais ou menos amarrados à estrada), mas de afirmar tão somente a força deste livro que agora nos alcança com a urgência do momento. Mas se for o caso de pensar trajetória, há duas coisas que valem a pena observar com relação ao Heyk: a primeira delas, e a mais fascinante, é que se trata de um poeta em busca de linguagem (como é bonito um poeta investigando a linguagem!), se debatendo com ela e conquistando-a, eventualmente, para recomeçar depois. Que vai tateando a forma, o signo, o significado, conforme queiram os críticos do momento, desde o livreto Maloqueirista (Sópro Sôpro!) até aqui, experimentando a escrita e nos informando da experimentação a cada novo passo, porque é sobre isso escrever; ou estou errado?
A segunda delas é a vocação coletiva do Heyk, que constitui essencialmente toda sua atuação desde que se conhece a figura – entre grupos, oficinas, apresentações – e que comparece no Coração Fodido pela maneira com que o livro foi viabilizado; pelas mãos, olhos e coração de Julya Tavares (figura preciosa) na edição; pela escolha por uma editora independente (Caiaponte!) num momento em que os poetas são convidados (eu ia dizer constrangidos) a se debaterem pelo mercado, a se mercantilizarem para serem mais lidos. E quando leio o Coração Fodido me lembro, também, que o mercado é aquela coisa da qual participamos apenas na medida da necessidade, torcendo pra não precisar tanto assim, enquanto que a poesia é outra coisa, que vai se fazendo e sendo feita do coração mesmo, algo tão fascinante e esguio que me põe a saudar, em plena pandemia – o regime da morte –, um livro, a vida, a publicação do Coração Fodido, o meu segundo livro preferido do Heyk, porque o primeiro é, sem dúvida, o próximo.
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