por Júlia Gonçalves
Em tempos de distanciamento social, a palavra ainda é gestar. O Pendurado – notem que a tradução gera polêmica, tendo em vista que a corda está no pé – não sai de casa. Não se move e tudo bem. O sacrifício, o oposto da luta: entregar-se. Todos os arcanos fazem parte da jornada do Louco, todos são um pedaço do caminho, igualmente importantes entre si. Saber a hora de nada fazer é tão importante quanto saber a hora certa de fazer, e o que fazer. Há uma sabedoria imensa em encontrar o momento certo de parar. Lembrando que parar não é desistir, abandonar, se retirar. Trata-se de simplesmente não intervir em nada. E isso não é abrir mão da utilidade, a cabeça do pendurado está acesa. Observa, percebe, digere: um exercício ao tempo. O homem tem o papel de ligar o Céu e a Terra, porém, quando suspenso no ar, a figura se coloca num isolamento místico, levita num voo onírico. Muitas lendas de diversas culturas atribuem aos enforcados o dom da vidência e da mediunidade.
Cartas Esperança e Pendurado do tarot Visconti Cary-Yale, século XV
Sobre o mistério quanto ao nome da carta não necessariamente condizer com o que acontece na figura central, nos é dada uma pista em textos de Galônio, de 1591, sobre as torturas nos primeiros séculos de cristandade: “As mulheres cristãs eram frequentemente suspensas pelo pé durante todo um dia, e os algozes faziam de tal modo que suas partes mais íntimas ficassem a descoberto, de maneira a mostrar o maior desprezo possível à santa religião de Cristo”. Era um castigo comum nas Idades Antiga e Média. Já o enforcamento foi castigo autoimposto a Judas, daí o sacrifício do nosso arcano. Pedro também pede para ser crucificado de cabeça para baixo por não se considerar digno de reproduzir o suplício de Jesus Cristo. São muitos os santos e mártires pendurados pelos pés. Vale citar que no Tarot de Cary-Yale, que data do século XV, entre 1420 e 1460, na carta da Esperança (que ocupa o lugar da Estrela na ordem mais usual) há uma figura feminina que pisa em um homem com uma corda no pescoço, que tem as palavras “Judas traidor” escrito em suas vestes na impressão original. Até cerca de 1750, O Enforcado era O Traidor em alguns baralhos, fazendo referência a Judas. Tanto na Esperança quanto no Traidor há uma corda com a âncora presa à figura principal. Em 1781, o nome do Pendurado é modificado para Prudência. Court de Gebelin considera que falta no baralho uma carta relativa a esse significante e coloca a Prudência entre a Força e a Temperança. O Pendurado é inativo e impotente, mas sua alma é livre. Ele não representa uma crença cega, mas um homem prudente que compreendeu a riqueza do sacrifício, que aspira o esquecimento total de si mesmo. A conexão entre a Estrela e o Pendurado é clara. A âncora, elemento comum às duas cartas, mantém o barco fixo no mar. Traz tranquilidade e firmeza em meio a mobilidade inconstante do símbolo maior do inconsciente. Fixa, amarra, e assim nos dá esperança na salvação. Judas não era um traidor apenas, era um suicida, alguém sem esperança.
Fotografia de Malcolm Browne em 11 de junho de 1963 do monge Thích Quảng Ðức durante autoimolação
O Enforcado é condenado a esperar e crer, imóvel, que os deuses repentinamente um dia perdoarão os seus pecados e nenhuma águia virá comer seu fígado – no Tarot mitológico é Prometheu. “Seria esse sacrifício minha escolha ou meu castigo?” Para os que já foram condenados, seja pela medicina ou qualquer outra ordem que damos como acima de nós, a pergunta ronda a cabeça de madrugada. Aguardar pode saciar a necessidade de reflexão, não se apegar nem ao heroísmo nem à culpa. Desafiar o destino e questionar os deuses está entre as tarefas do nosso arcano dessa quinzena. Thích Quảng Ðức ateia fogo em si mesmo no Vietnã do Sul em 1963 ao protestar contra a tomada do cristianismo no seu país majoritariamente budista. Curiosamente o coração do monge se manteve intacto mesmo depois de morrer carbonizado e hoje é relíquia no Templo Xa Loi, que fica a poucas quadras de distância do local da foto. Queimado vivo sem emitir um som sequer e sem se mexer na posição de lótus.
Ver as coisas de ponta cabeça nos obriga a mudar de ponto de vista. Reveja suas prioridades, observe o que você anda fazendo, que decisões anda tomando. Os arcanos são facetas de nós. Agora, a pandemia mostra que é tempo de pendurar, aceitar que não controlamos nada. Quer dizer, até controlamos, mas você entende o que eu quero dizer? Certas coisas não. Diz pro seu ego megalomaníaco: sobre isso, você não pode fazer nada. Desista da urgência, aprenda a ser paciente. Um passo pra trás podem ser dois pra frente. Respeita o tempo das coisas! O Arcano XII se livra do desejo das mãos de reter, agarrar as coisas, se apropriar delas. O desejo fala baixo no ouvido do Pendurado, se desligou de todos, mas continua profundamente conectado à consciência. “Sem abandonar o mundo, eu me retiro”.