por Julia de Souza
No belo ensaio “Um detalhe na paisagem”, publicado na revista serrote n. 27, o poeta fluminense Leonardo Froés visita a história e a produção de uma linhagem de poetas, sobretudo norte-americanos, que optaram por retirar-se da agitação da cidade para fundar uma nova vida — literária e corpórea — na reclusão do campo ou da floresta.
Na contramão da poesia de John Haines, cujo ponto de vista chegou a se irmanar ao de uma coruja no poema “If the owl calls again”[1], o egocentrismo da “floresta de nervos”[2] que constitui a sensibilidade urbanoide não costuma nos permitir entrar em consonância com a existência dos bichos — aqui não nos confundimos com eles, e ignoramos qualquer tipo de animismo. Os bichos na cidade são, no mais das vezes, uma surpresa bem-vinda, graciosa (lembremos das simpáticas capivaras que caminham tranquilas pelas margens do rio Pinheiros); mas quando deparamos, ainda que muitas vezes só por meio de fotografias, com um animal estranho por excelência, com um bicho que nosso tino associa ao reino das selvas ou das gaiolas de um zoológico, essa perfuração na paisagem aciona uma espécie de alarme: o que esse retirante às avessas veio tomar de volta?
Há cerca de um ou dois meses (a esteira dos dias anda um tanto amorfa), Adelia, minha mãe, reparou num canto de pássaro inédito em nossa redondeza. Moramos num bairro bastante arborizado, superpopulado de sabiás, bem-te-vis e uma série de passarinhos amarronzados cujos nomes desconheço. Os beija-flores desapareceram há muito. De vez em quando umas pombas imensas também frequentam o nosso quintal.
Mas o canto que tomou a atenção de Adelia é novo e mais complexo. Surge sempre ao anoitecer e segue noite adentro. Confesso que só dei atenção àquele canto depois que minha mãe não só nos fez ouvi-lo, mas também se empenhou para descobrir sua fonte — a ferramenta de busca no google foi: “pássaro que chora”. O resultado foi unânime: o pássaro que chora é o Urutau.
Ave da ordem Nyctibiiformes, da família Nyctibiidae, o Urutau (Nyctibius griséus) habita praticamente toda a América do Sul. Seu nome científico deriva do grego (nux = noite; e bios: vida; nuktibios = aquele que se alimenta na noite; e do (latim) griséus = acinzentado, cinza. Assim, o Urutau é o pássaro cinza que se alimenta na noite (embora ele me pareça mais amarronzado do que cinzento). E, eu diria ainda: a ave que se alimenta da noite.
Seus hábitos noturnos e solitários renderam inúmeras lendas associadas a seu canto — é chamado também de Mãe-da-lua. Em tupi, urutau significa “ave fantasma”. Na tradição indígena boliviana, o Urutau é uma moça transformada em ave pelo pai ciumento, que se opunha ao amor da filha por um jovem guerreiro. Transfigurada em ave, a jovem chora a morte de seu amante — que o pai assassinou como forma de punição. Entre a população nativa do Peru, o Urutau é a forma animal de um bebê, abandonado na floresta pela mãe, que queria protegê-lo da peste. “Ayaymama” — “ai ai mamãe”, chora a criança alada.
É também muito difundida a superstição de que o Urutau, o soar do seu canto noturno, é um presságio da morte. Depois de ouvir o Urutau aqui em casa, minha avó —que sabe muito de pássaros e também é um tanto versada em saberes sensitivos —, já de volta a seu apartamento, nos telefonou com um aviso: “vai acontecer uma morte. Mas não se preocupem: é comigo.”
Porém, no momento em que finalmente reparei no canto do Urutau, a família reunida, minha reação a quente foi dizer: “para mim isso parece mais uma risada do que um choro”. Veremos…
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Universalmente o Urutau é, portanto, uma ave que mobiliza dois campos simbólicos: o da morte (sua antecipação, seu lamento) e o da noite (que é também o território da fantasmagoria). Isso se deve, acredito, sobretudo a dois aspectos fundamentais de sua presença — e aos afetos despertados por essas características: 1. Seu canto sombrio; 2. Sua incontornável feiura.
Sim, o Urutau é terrivelmente mal-apessoado. Tem enormes olhos amarelos saltados das órbitas, o bico especialmente adunco e a boca escancarada de um palhaço. Sua plumagem não contrabalanceia essa aparência quase aversiva: as penas formam um padrão desorganizado e variam entre o marrom escuro e claro, salpicadas aqui ali de um branco turvo.
Falemos, então, da fealdade, ou da beleza estranha, negativa, ou daquilo que nos parece repugnante. Não vou me arriscar na investigação da noção de gosto, no questionamento da construção das ideias de beleza ou feiura. No primoroso tratado Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo (1757), o filósofo inglês Edmund Burke examina essas questões de maneira tão rigorosa quanto poética. No entanto, as partes do ensaio que mais interessam aqui são aquelas que se debruçam sobre os efeitos despertados por certos aspectos estéticos dos sons, imagens, paisagens, cheiros, obras de arte etc. Burke nos conduz numa viagem através dos sentidos humanos e de suas implicações semânticas e afetivas. Mas por que isso pode vir a calhar num texto sobre o Urutau? Lembremos que, como escreveu Jean-Luc Nancy: “o ouvido não tem pálpebras.”
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Mais além do senso comum, a ideia de sublime elaborada por Edmund Burke está profundamente ligada ao campo do horror. Escreve ele:
Tudo o que de algum modo seja capaz de excitar as ideias de dor e perigo, isto é, tudo o que seja de alguma maneira terrível, ou que diga respeito a objetos terríveis, ou que opere de uma forma análoga ao terror, é uma fonte do sublime [...].
O sublime, portanto, está atrelado a um superlativo — que pode também ser proveniente da beleza, mas sempre de uma beleza que carregue algum aspecto de violência; uma beleza quase insuportável de tão intensa; uma beleza que produz paixões incontornáveis. Mas, o cerne do sublime delineado por Burke é sua ligação colateral com a dor, o terror e o perigo.
Voltemos ao terror. Trata-se tanto de um afeto como de uma marca formal. E Burke enumera e embaralha tudo aquilo que pode conter ou suscitar o terror: a vastidão; a feiura; a intermitência; a privação; a luz excessiva e a escuridão; o grito dos animais; a grandiosidade, e por aí vai. Estamos, quando em contato com essas ou outras formas de excesso, no território do inapreensível — de algo que escapa à nossa capacidade de nomeação. Do pasmo. Burke fala em “assombro”.
Na célebre pintura Caminhante sobre o mar de névoa, de Caspar David Friedrich (1818), ícone do romantismo alemão, vemos as costas de um homem que, equilibrado sobre um rochedo alto, encara a imensidão brumosa de uma paisagem. Encara a paisagem de cima — mas se há imponência em sua posição, há também perigo: a um passo dele, está o abismo.
Se o sublime alemão se volta sempre para o alto, a teoria de Burke nos arrasta sempre para o campo da abjeção — a desorientação provocada por esse sublime parece estar facilmente ao alcance de nossos olhos, pernas, ouvidos.[3]
E qual a razão de hoje associarmos, em geral, a ideia de sublime a um prazer, um deleite, a beleza suprema? “Hoje pôr-do-sol foi sublime.” Aqui estou especulando: talvez porque o sublime, em sua origem, sempre pertenceu ao campo dos “sentimentos mistos.”
Afinal: o Urutau gargalha ou choraminga?
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“Rir de nervoso”; “Morrer de rir”; “Chorar de rir”. É evidente que o riso é uma das expressões humanas mais interessantes e misteriosas: um riso pode ser estridente, inadequado, engraçado, estranho. A risada envolve certo grau de descontrole e convulsão. A mesma risada pode ser deliciosa para quem ri e extremamente desagradável para os que a escutam. Deixando um pouco de lado as muitas motivações sociais dessa aversão pelo riso alheio (que se manifesta sobretudo em relação ao riso das mulheres), quero voltar ao canto ambivalente do Urutau.
Se para a minha mãe a característica mais marcante da melodia quase indeclinável do Urutau foi o seu tom lamentoso, quase uma imitação do choro humano, para mim esse som pareceu mais suspeito: uma risada bem dada — uma risada bruxuleante e malévola.
Nosso choro pode ser (mais raramente) motivado por uma comoção fraterna, estética, por uma identificação profunda e emocionante com algo que nos é apresentado. Mas o choro fundamental pertence ao universo do sofrimento — que é gerado por uma falta, uma perda, uma dor física ou emocional (mesmo que difusas), e também pelo medo de perder o controle, de ser invadido por acontecimentos atrozes, de ser esmagado por forças irremediáveis — medo, no limite, de morrer.
Cito novamente uma passagem de Burke, a respeito da dor e sua associação aos estados-limite que o sublime produz:
[...] aquilo que em geral torna a própria dor, se me é permitido dizê-lo, mais dolorosa, é o facto de ela ser considerada uma emissária deste reino de terrores [o da morte].
Minha avó, pelo jeito, convive intensamente com o sublime.
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Ainda sobre a dor: o choro desesperado de um bebê é, pelo menos para mim (imagine para quem o pôs no mundo!) muito desestabilizador. Algo dói nesse ser humano em processo, e não se sabe o quê. E, além disso, esse som informe nos obriga a lembrar de como a vulnerabilidade pode ser profunda, abismal e muito dolorosa.
O canto do Urutau é certamente melancólico. Nossa primeira impressão dele é de agonia — uma agonia que, como a de um bebê que chora no outro quarto, não conseguimos discernir. O canto desse pássaro feioso quase que repete a noite, o assombro da noite. (Uma das artimanhas desse pássaro é sua impressionante camuflagem, por meio da qual ele se funde aos galhos das árvores quando repousa).
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Para mim, no entanto, a melancolia do canto estava ali, mas chegou confundia (na verdade, quase vencida) por uma espécie de sarro. Mas, se minha hipótese for pertinente, esse som tem feições dúbias e aciona o campo dos sentimentos mistos.
Urutau é, aos meus ouvidos, certamente uma fêmea. Mãe-da-lua, pensou alguma cosmologia. Se esticarmos a corda, uma mulher que nos obriga a um som ambivalente, dúbio, incerto: “oblíqua e dissimulada”? Não. Talvez excessivamente hedonista, uma mulher que escapa ao que ainda teimamos em considerar gracioso, feminino. Tem o júbilo de quem pertence à noite, de um pequeno corpo que esfrega o sinistro em nosso ouvido; não provoca o arrebatamento que o sublime exige da beleza. É sinuoso; sinistro, enfim.
E Burke já tinha pensado em tudo isso, no distante século XVIII: o sinistro, em sua evocação da dor e da ameaça, é capaz de provocar um “horror delicioso”, contanto que o perigo que ele evoca não esteja batendo literalmente à nossa porta. Há sim um gozo na intuição do risco: e é perigoso reconhecê-lo. E há melancolia no cômico, no que provoca a gargalhada — uma risada extravasada pode ser consequência de (no mínimo) um sarcasmo cruel, e quem entoa essa risada sente uma amargura retroativa. Arrisco dizer que o sarcasmo, o tão precioso sarcasmo, é sempre cáustico: convoca violência, se alimenta dela. Mas que prazer, que prazer incômodo há no sarro que o Urutau tira de nós: a-a-a-a-a-a-aaa.
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Mas não sabemos e nunca saberemos se o Urutau sofre, goza, ou sofre e goza, goza e sofre. O fato é que ele (sua imagem, seu canto) disparou e dispara uma série de narrativas, sensações, assombros — nos lança ao campo radical do sublime. O canto de morte & sarro do Urutau incomoda nossas noites, mesmo que ligeiramente. E há um desconforto na ambiguidade. Eu escuto uma gargalhada sórdida que estorva um tanto meu conforto (e me faz escrever essas tantas linhas que, com sorte, alguém lerá); minha mãe escuta um choro (e que efeitos ele provoca nela?); já os ouvidos da minha vó parecem irmãos do canto do Urutau: antecipam a morte.
Quando vi as fotos do Urutau, entendi algo sobre o terror: ele tem a boca rasgada do regozijo que se confunde com urro de dor; essa boca abjeta parece estar prestes a virar do avesso, ou, o que seria pior: engolir a noite, devorar o sumo do mundo — e a nós todos, goela abaixo.
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Um prodígio, esse pássaro-fantasma. E ele tem mais uma carta na manga: um "olho mágico". A cor chamativa dos seus olhos saltados não colabora para a sua total camuflagem; mas os olhos do Urutau sabem enganar os predadores: suas pálpebras superiores possuem duas fendas que lhe permitem enxergar, mesmo com os olhos fechados.
Que perigo: estamos em casa, mas a noite estranha do Urutau nos sequestra;
Que perigo: o Urutau nos observa, e nunca se deixa ver. Mas, escute:
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[1] “And when the morning climbs/ the limbs/ we'll part without a sound,/ fulfilled, floating/ homeward as/ the cold world awakens.”
[2] Expressão retirada do ensaio supracitado de Leonardo Fróes; possivelmente se trata de uma citação de Gary Snyder.
[3] Essa distinção entre o sublime alemão e o inglês, de Burke, foi descrita e analisada por Márcio Selligmann-Silva no ensaio “Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo”, in: O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução, São Paulo: Editora 34, 2005., que foi uma referência para a escrita deste texto.
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