Por Júlia Gonçalves
"O Juízo Final" afresco de Giotto di Bondone na capela Arena, em Pádua, Itália 1304-1306.
Depois de passar pela Lua (arcano 18, inconsciente) e pelo Sol (arcano 19, consciente) chegamos ao arcano 20. Depois de enxergar o lado de dentro e o lado de fora, estamos aptos a tomar partido. Equilibramos os dois e com isso acendemos a luz da razão e ela ordena uma decisão. É o último grande passo pra alcançar o arcano 21, o fim da jornada do Louco, O Mundo. Não se acessa a plenitude total sem se comprometer com algo. É preciso escolher um lado, descer de cima do muro. O arrebatamento separa o joio do trigo, a Ana Maria Braga celestial grita com sua trombeta do apocalipse “acorda, menina!” e decide quem será salvo e quem será condenado. Evitar a carta do julgamento é o nadou-nadou-morreu-na-praia. Você se lembra dos que diziam não ter partido? “Nem feminista, nem machista, sou humanista”; “Dia da consciência humana”; “nem esquerda, nem direita, o caminho é pra frente”? Creio que conforme o tempo passa fica cada vez mais evidente o papo furado nesse tipo de discurso descompromissado.
Vemos o Julgamento no abandono de velhos valores e adoção de novos princípios, como quando uma pessoa com muita influência escolhe se posicionar politicamente abrindo mão de contratos em prol de uma causa maior. Com isso vêm o medo das represálias dos que discordam, mas o êxtase de ser abraçado pelo lado que escolheu. O Julgamento também está num criminoso sexual que sempre se escondeu atrás do poder e é finalmente exposto e condenado, como o produtor de Hollywood Harvey Weinstein. O nosso medo ao descobrir o horror que se passa nos bastidores, o nosso êxtase ao ver a justiça sendo feita. O medo e o êxtase são sentimentos que dão tom a esse arcano. Nota-se também um tom coletivo nessa carta. A minha salvação depende não só do meu despertar, mas do seu também. Entender que não é particular, é coletivo. Na numerologia da carta, 2 + 0 = 2, numero da polaridade, escolha, reação. De nada adianta escutar a trombeta se não nos levantamos. Experimentar os aspectos mais sutis da existência requer deixar pra trás o corpo, a casca, e embarcar com os demais de forma organizada, seja através de movimentos sociais, coletivos de arte ou criando uma mídia coletiva, como essa revista que vos fala.
O grande Dia finalmente chega. Nele temos um significado semelhante à Morte, mas diferente dela, que fala do fim, o Julgamento é o momento exato de transição, é a ponte que nos leva a uma alternativa esperançosa, melhor do que a anterior. O Antigo Testamento é quase um livro de terror, a metáfora bíblica é criada pra cativar temor, mas o arcano XX traz uma mensagem positiva pros que tem a consciência limpa (lembre-se que o arcano XXI se chama O Mundo e não O Apocalipse). Já para os apegados ao alto do muro ele é um empurrão - doloroso, mas necessário. O tarot desafia o cristianismo medieval quando coloca o Juízo Final como a salvação divina, o milagre, e não fica tão preso só à simbologia do medo. Se sua alma foi bem cuidada, ela será arrebatada e o reino dos céus te aguarda. É momento de ascensão, mudar de plano e não olhar pra trás. O tarot fala em diversos arcanos sobre o conceito de destruir/reconstruir, começo/fim, mas há várias formas e razões pra se fechar e abrir um ciclo. O Julgamento pede organização de pensamento, implicação nas decisões, postura e abertura pro que essa mudança traz. O Julgamento fala de uma decisão que deve vir de nós e assim tornar possível reencontrar-se como pessoa, donos da própria vontade.
O último sinal bíblico que precede o apocalipse é a abertura do famoso Sétimo Selo, que dá nome ao filme mais famoso de Bergman. O final do filme traz a cena memorável da morte conduzindo uma dança com os personagens enfileirados e o ultimo da fila toca um alaúde. Ao escolher mostrar a cena de longe, apenas com silhuetas, Bergman nos coloca a pergunta: estão eles sendo arrastados contra a sua vontade ou dançando bebados e desajeitados a danse macabre? O medo e o êxtase se confundem, tiram o controle dos pés e climatizam o fim do mundo como se conhece. Afinal, o fim impõe a dança ou a conduz? Tragédia, poesia e gozo se misturam. No filme assistimos a história do cavaleiro que propõe um jogo de xadrez com a morte, não só como um jeito pra ganhar tempo na terra, mas pra compreende-la. Não aceita sair daqui sem decifrar a vida, a morte, deus e o diabo e todas as pontas soltas pra quem volta das Cruzadas e se depara com a peste. O Caminho do Arcano 20 na Árvore da Vida é Shin, que conecta a razão (Hod) e a matéria (Malkuth). O cavaleiro de Bergman explora essa ponte como estratégia de fuga do destino inevitável e a ilusão de que ao entender a morte, sobreviveremos. Porém os únicos a escapar dela no fim são os artistas. Não os que a exercem pelo prestígio, como o diretor de teatro da companhia, mas a família simples que tem como ambição apenas viver pela arte e leva-la às pessoas. Pra se tornar eterno é preciso compreender, mas só isso não é o bastante. Pra ganhar a simpatia da Morte é preciso fazer as escolhas certas.
Cena do filme "O sétimo selo" de Ingmar Bergman, 1957
Comments