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O machismo no mercado da música

Atualizado: 13 de mar. de 2023

por Pérola Mathias





“Ser mulher na música é humilhante”. Ainda estamos em março e eu já me peguei pensando e dizendo essa frase algumas vezes para expressar situações que passei sendo jornalista musical e produtora. Não, não foi esse ano que isso começou. E nem foi nesse ano, também, que eu comecei a trabalhar com música. Frequento assiduamente shows, festivais e espaços da música independente desde os meus 15 anos. Primeiro, porque era apaixonada por música e por descobrir novos artistas. Só que o que era diversão, depois de anos virou profissão. E, mesmo com uma trajetória consolidada como pesquisadora e com títulos acadêmicos sobre o tema, sabe o que eu escuto ainda hoje? “Nossa, porque a Pérola tem vindo a tantos shows sozinha?”. Inacreditável, não é? Mas é real. E é humilhante. É desanimador. É triste.


Diante desta e de tantas outras situações, o que podemos fazer? Acredito, de verdade, que nossa saída é tornar essas humilhações cotidianas do machismo estrutural uma forma de revolta e canalizar essa revolta para o debate e para a ação. Existem espaços e iniciativas que já discutem a presença feminina na música e o que tem maior destaque talvez seja o WME - Women Music Event, que todo ano promove discussões, oficinas, palestras, shows e encontros feito para mulheres e por mulheres. Além de promover uma premiação para as diferentes categorias de trabalho na área musical.


Para a coluna deste mês, que sai agora tão próximo ao 8 de março, eu convidei algumas mulheres da música que conheço e que exercem funções diferentes nesse ecossistema para me darem um breve relato da experiência delas. Vejam bem, nenhuma de nós é exceção. Todas nós temos histórias parecidas. E é por isso que bradamos por um mundo menos machista. Bora fazer a nossa parte na música?


Carol Morena - produtora cultural, realiza o Festival Radioca, em Salvador, e criou a Tropicasa Produções


Eu acho que as coisas mais gritantes e apontáveis são as coisas técnicas. Na área que eu faço, que é de gestão, direção de evento, é um pouco mais esperado que mulheres façam essa parte, hoje em dia, pelo menos. Então os preconceitos que vêm nessa parte são mais sutis e explicá-los é mais complicado do que explicar coisas que são objetivas e óbvias, que estão relacionadas sempre a lidar com áreas técnicas, como DJ, saber ligar o equipamento, ou nunca ficar à vontade passando o som, porque a gente percebe que está sempre sendo olhada e julgada, do tipo “ah, será que ela entende mesmo?”. E é uma cilada, né, porque primeiro você tem que se preparar 5 vezes mais, porque você não quer ser colocada nesse lugar. Então você não se permite não saber algo. A gente tem que saber tudo porque sempre vai ser colocada em xeque ou em questão. Ou até mesmo quando estou contratando serviços para o festival, hoje os fornecedores já me conhecem e já têm uma relação mais antiga, mas quando vou contratar fornecedores de área técnica que eu nunca contratei ou que não me conhecem, já aconteceu diversas de vezes de eu ser claramente enrolada e você saber que não é daquela maneira. Ou de querer fazer valores mais caros por coisas de qualidades inferiores. E isso é complicado porque chega um momento em que você só quer facilitar a sua vida e você entrega “ah, eu vou colocar um cara para fazer isso”. Porque é muito desgastante, isso é uma coisa que é raríssimos são os fornecedores que não tentam te enrolar, quando o serviço e da área técnica, ou então eles vão para um outro lugar que é o de ficar meia hora querendo te explicar tudo como se você fosse uma idiota e não conseguisse entender. Tudo relacionado à área técnica é onde o machismo grita mais alto e não tem como disfarçar. As outras coisas são, por exemplo, você perceber que você não tem tanto crédito quando você fala em atividades de curadoria, em comissões de editais. Diferentemente dos homens, você te que ser muito mais assertiva no que você fala, você não pode se dar o benefício da dúvida publicamente porque você já é muito questionada, muito invalidade. Isso é mais do campo do subjetivo e é muito fácil de alguém que está no mesmo ambiente dizer “não, isso não aconteceu”, mas a gente sabe né?


Fabiane Pereira - jornalista e radialista, é apresentadora na rádio Nova Brasil FM e do canal Papo de Música, no YouTube. Foi vencedora do prêmio APCA de Produção e Apresentação musical de rádio em 2022. É também colunista da Veja Rio.


Sobre as vezes que eu sofri machismo no mercado da música, acho que eu preciso descrever as vezes que eu não sofri machismo no mercado da música. Em todas as rádios que eu trabalhei, e ao longo de dezoito anos foram cinco, todas as rádios comerciais, todas as rádios com muito audiência, em todas elas eu sofri machismo. Inúmeras vezes. Claro que existe aquele machismo estrutural que é disfarçado de piada, de comentário, de riso, mas existe também aquele machismo maldoso, aquele machismo que está ali exclusivamente para te oprimir e te silenciar. Inúmeras vezes eu me senti oprimida dentro da minha área, dentro do mercado, dentro da minha profissão. Inúmeras vezes eu tinha mais capacidade do que os meus chefes homens para exercer determinada função e eu era descredibilizada.


O mercado da música é extremamente masculino e o mercado de rádio, além de masculino, é muito machista. Talvez o rádio, dentro do ecossistema da música, seja o meio mais predominantemente masculino. Haja vista que a gente tem zero diretoras de programação, zero diretoras comerciais dentro da estrutura radiofônica no Brasil. Claro que eu estou falando muito do meu recorte, que são rádios comerciais do eixo Rio-São Paulo, mas eu desconheço rádios comerciais que tenham mulheres na diretoria artística, na programação e diretoria comercial. Eu já passei por tantas situações bizarras, desde “você deveria falar mais grave pra não soar tão estranho para os ouvintes, porque a sua voz é uma voz muito feminina”, porque eu tenho um toz de voz mais agudo, que tende a ser reconhecida pelos ouvintes como uma voz feminina, afinal de contas eu sou mulher. Até “sua voz não combina com esse horário da programação da rádio porque esse horário tem muito homem ouvindo rádio”.


Depois de estar nesse mercado há 18 anos, eu finalmente estou em uma rádio, que é a Nova Brasil FM, que tem o selo igual, que é o selo dado pelo WME (Women Music Event), uma iniciativa de promoção à equidade de gênero no mercado da música. A Nova Brasil tem esse selo, o que significa que 50% ou mais dos funcionários é mulher. Isso é muito bom, é uma vitória para todas nós. Quando eu comecei, eu era única mulher na locução na rádio que eu trabalhava, depois tinha duas, foi tendo três e hoje eu trabalho numa rádio em que a maioria é mulher.


Imagino que Patrícia Palumbo, que é uma radialista brilhante de uma geração anterior à minha tenha sofrido infinitamente mais do que eu. Acho também que as meninas que estão começando agora, que são novas no mercado, também vão sofrer menos do que eu. Mas a minha geração sofreu muito machismo. E a minha geração, diferente dessa nova geração, ela se calava, ela se silenciava. Porque é assim que a gente aprendeu: é melhor a gente engolir, para que a gente continue dentro do nosso seguimento e não seja completamente atropelada. Eu fiz um exercício aqui e lembrei de inúmeras situações que eu engoli para não ser atropelada, pra não ser demitida, pra ser respeitada, até. Porque cansei de ver mulheres que peitavam e eram demitidas, ridicularizadas. Por muitas vezes eu me silenciei mesmo estando certa. Mas às vezes a gente precisa dar um passo atrás para dar três pra frente e eu, ao longo da minha trajetória, fazendo essa retrospectiva, eu vejo que eu dei muitos passos pra trás e depois andar pra frente e ocupar o lugar que eu ocupo hoje, que é de prestígio, de protagonismo dentro de uma rádio, que é a maior rede de radios que tem no Brasil. É um mercado que não prioriza a mulher, mas é um mercado que está mudando e que está buscando a equidade de gênero.


Um recorte que eu acho interessante ser falado é que, das mulheres que estão nesse mercado, a maioria é branca. Então além do recorte de gênero ainda existe o recorte racial que é muito pouco levado em consideração. O mercado da música é muito branco, ainda, mas acho que estamos caminhando para frente.



Juliana R - compositora, artista sonora e editora de som. É co-fundadora do projeto A Onda Errada, lançou seu disco homônimo em 2010 e compôs a trilha sonora dos filmes “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu” (2019), “Estamos Todos na Sarjeta, Mas Alguns de Nós Olham as Estrelas” (2020) e “Febre” (2017).


Difícil falar sobre o machismo no áudio e na música, porque trabalho nessas áreas há mais de quinze anos e já passei por diversas fases em relação a isso. O que posso dizer é que desisti de lutar contra e passei a desenvolver mecanismos pra me ajudar a passar por situações em que tentam me fragilizar e também situações em que se aproveitam de algum deslize meu, situações em que me encontro vulnerável de alguma forma. Eu fico atenta sobretudo aqueles momentos em que penso "o que está acontecendo é o que está acontecendo?", aquele momento breve e paralisante. Eu costumava dar o benefício da dúvida, talvez não esteja acontecendo, mas agora eu reconheço o que sinto, tomo o que acontece como realidade e reajo imediatamente. O problema da dúvida, é que se nesse momento você dá essa abertura, muitos se aproveitam e inserem aí, bem nesse instante, uma pulga atrás da sua orelha, a pulga do talvez você esteja louca, talvez esteja exagerando, talvez você só esteja insegura, talvez não tenha sido bem isso que ele quis dizer. Esse foi um dos inúmeros mecanismos que encontrei pra me resguardar. Sobre situações específicas, bom, já li resenhas do meu disco onde falavam da minha aparência (nunca vi isso sobre o disco de um homem), já tive que provar (depois de chamar mais uns dois homens pra confirmar, claro) que algo técnico que me solicitaram não era viável, já tiveram mulheres que me encaminharam (sem que eu tenha solicitado) dicas dos maridos/namorados pra me ajudar (?) com o meu trabalho, já trabalhei com homens que se portavam como se eu tivesse que tratá-los feito mestres e por aí vai… A lista é grande e infelizmente tenho a certeza de que não vai parar de crescer.


Julli Rodrigues - jornalista e pesquisadora musical e repórter do núcleo Rádios e iBahia - Rede Bahia


Acho que a experiência mais marcante de machismo que sofri no meio musical e jornalístico foi a vez que tive meu título de "pesquisadora musical" questionado veladamente por um homem. Eu apresentava um programa mensal em uma rádio e sempre me intitulava como "jornalista e pesquisadora musical". Tanto no texto do programa quanto no release, eu me apresentava desta forma. No entanto, o apresentador de um dos programas jornalísticos da casa sempre suprimia o título "pesquisadora musical" quando ia fazer a chamada da atração que eu apresentava, me colocando apenas como "jornalista". Achava isso estranho e até um tanto desrespeitoso. Um dia eu o questionei sobre isso e ele disse que considerava "jornalista e pesquisadora musical" uma espécie de pleonasmo, porque todo jornalista é também um pesquisador por si só etc. Eu respondi "certo, mas acho que você deve respeitar a forma como eu me apresento, porque é importante para mim enquanto mulher e enquanto ser político". Me pergunto se ele se sentiria no direito de "editar" a autoapresentação de um homem da mesma forma.



Kamille Viola - jornalista com passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, O Estado de S. Paulo, Billboard Brasil, Bizz e Canal Futura, entre outros. É autora do livro “África Brasil: Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver”, finalista do Prêmio Jabuti 2021.


O machismo está presente em toda a sociedade, claro, mas em alguns espaços ele é ainda mais explícito, por nós sermos minoria. Em mais de 20 anos de carreira, já vivi muitas situações de misoginia, entre mais veladas e outras escancaradas. Tem o entrevistado que fica te tratando como se você fosse criança, te explicando sobre seu próprio trabalho (e infelizmente às vezes esse cara é alguém superlegal e que você admira). Os homens que dizem que não foi por você ser mulher que você viveu uma situação ruim na profissão. Os homens que dizem que foi só por você ser mulher que você conseguiu alguma conquista especial. Já sofri plágio, já ajudei colegas e fui sacaneada por quem ajudei, esbarro em mais dificuldades que meus colegas homens para conseguir entrevistas, muitas vezes não sou chamada para falar sobre um assunto sobre o qual sou uma das pessoas mais qualificadas e, em vez disso, chamam algum homem que não tem nenhum trabalho relevante sobre o tema. Eu e minhas colegas recebemos propostas piores para publicar livros. Quando começamos um trabalho ou projeto novo com alguém que não nos conhece, muitas vezes temos que lidar com muita desconfiança sobre nossa capacidade. Temos que nos dedicar muito mais que os colegas homens para chegar a um patamar semelhante de reconhecimento e oportunidades. E olha que sou uma mulher branca, cisgênero, de classe média, sei que outras mulheres enfrentam barreiras ainda mais complicadas. Mas é frustrante que em 2023 tenhamos que ficar gritando aos quatro ventos que somos capazes de pesquisar e escrever sobre música, apenas por sermos mulheres. Mas a gente segue e luta para que as colegas de gerações mais novas não precisem passar pelas mesmas situações violentas que nós passamos.



Natália Lebeis - compositora, curadora e produtora cultural. É co-idealizadora do Festival Itinerância Rebel e integra equipe de produção do C6 Fest.


Não há opção de sobrevivência para os corpos femininos - e outras minorias - se não pelo viés político.


No momento em que eu entendi o que queriam que o meu gênero fosse no mundo, eu soube que viveria em estado permanente de luta. Quer eu fosse médica, fisiculturista, ou, como é o caso, trabalhasse com música.


Não faz muito tempo em que a gente não se via fora dos lugares pré determinados culturalmente. Eu não me sentia representada ou conseguindo representar. E o acordo velado sempre foi o da falta de qualificação suficiente.


Algumas páginas pra frente, empurrando o muro do patriarcado, eu já consigo contratar uma equipe técnica inteira feminina, eu posso indicar uma baterista foda pra uma gig, eu encontro com curadoras, produtoras musicais e artistas nas mais diversas posições.


Acho que estamos entendendo que o feminismo é uma ferramenta de uso diário. É o nosso facão simbólico e com ele vamos abrindo os caminhos e rescrevendo as referências.



Neila Kadhí - compositora, instrumentista, cantora, pesquisadora e produtora musical. Lançou em 2022 seu primeiro álbum: “Feitura”. É mestranda em música na USP e especializada em “Electronic Music Producer” em Los Angeles-EUA.


A música sempre foi parte constituinte de todas as sociedades e, apesar disso, a mulher tem sido colocada em segundo plano nessa "roda" do fazer musical. Eu atuo na música profissionalmente há cerca de 20 como cantora, compositora e instrumentista e, desde 2012, estudo o universo do áudio e tenho também atuado como produtora musical.


Diversas experiências me fizeram perceber o quanto o mercado da música é segregador, machista, racista, misógino. Fui em busca de me defender das diversas situações de violência, das mais subjetivas às mais escancaradas. Da pergunta irônica numa entrevista de rádio à humilhação na passagem de som. Certa vez, poucas horas antes de um show que faria naquela noite, fui violentamente exposta pelo técnico de som, o responsável pelo palco no qual eu iria me apresentar poucas horas depois daquele episódio.


Durante minha trajetória, foram diversas as situações parecidas com esta que me causaram dor e vontade de desistir, porém, esta experiência foi a gota d'água e também a que me fez, através da raiva, buscar por mudanças. A busca pelo aprofundamento no universo do áudio foi um desejo investigativo mas foi também uma maneira de construir autonomia. Ser mulher no universo da música não depende "apenas" de talento. Tenho encontrado algumas vias e uma das que mais acredito é a da coletividade, não à toa, acabei de produzir “Feitura”, um álbum colaborativo, realizado remotamente. Tenho certeza de que este é um caminho potente e que de mãos dadas podemos romper as estruturas seculares que seguem tentando nos manter invisibilizadas. Porém acredito também que se esta não pode ser uma ação encerrada nas mulheres. Precisamos seguir juntos na direção de dias equanimes na música e na sociedade.




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