por Pérola Mathias
[...] que mais poderia ser a cultura senão a unidade criativa de forças que, de outra forma, poderiam estar dispersas e enfraquecidas em suas próprias singularidades?
Abdias do Nascimento em O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, (grifos do autor)
A música de Yndi imagina um novo mundo cujas raízes estão fincadas em um Brasil negro. Parisiense, filha de imigrantes brasileiros, a artista entende que sua identidade não existe sem sentir as rotas traçadas por seus ancestrais pelo Atlântico e pagar tributo a eles, o que faz em seu novo disco “Noir Brésil”. Ao longo das treze faixas que compõem o álbum, recuperou muito da tradição da música afro-brasileira, especialmente as percussões, aliando-as à sua experiência anterior com o projeto solo Dream Koala, no qual explorava ambiências eletrônicas ligadas ao dream pop e letras em inglês.
Ao deixar o projeto sonoro que empreendia de lado e assumir seu nome próprio como persona artística, a relação com a língua em que passou a compor foi fundamental. Mesmo que tenha começado a escrever as letras das músicas em francês, aos poucos foi encontrando espaço para mesclar com o português, que foi sua primeira língua em casa, antes do período escolar, ensinada pelo pai mineiro e pela mãe carioca. Apesar de ter nascido na França, todos os demais membros de sua família vivem no Brasil.
Com o Dream Koala e a possibilidade de quase todo jovem dos anos 2000 de poder fazer música sozinho em casa com o computador, sua música conquistou espaço. Com lançamentos entre 2012 e 2015, apresentou-se em eventos na França, em Moscou, Berlim e para o Boiler Room na Inglaterra. Do Dream Koala à assunção de seu nome, Yndi (sobrenome da Silva), a música da compositora vem se tornando cada vez mais orgânica, a guitarra é trocada pelo violão e a voz, ainda que suave, surge como protagonista: “Quando eu comecei a fazer esse álbum eu tinha 23/24 anos, eu tenho 27 agora, foi um momento que eu quis voltar e escutar de novo músicas que os meus pais escutavam e foi um período que eu me aproximei muito da minha avó e da minha mãe também, aí me deu vontade de fazer esse projeto mais inspirado no Brasil, o que não quer dizer que o próximo álbum não vai ser diferente. Mas eu quis fazer isso porque tem tantas coisas na música brasileira que eu me inspirei e que já eram as coisas que estavam em torno de mim”.
O Dream Koala estava ligado de forma indissociável a um estilo e, ao deixá-lo de lado, Yndi diz querer procurar a liberdade de poder não estar presa a um formato ou gênero. Antes de chegar ao disco de estreia, “Noir Brésil”, lançou um projeto que antecipava a mudança: “Introdução”. Com três músicas (que estão no disco novo) em formato acústico, Yndi apresentou a nova face de seu trabalho e de si mesma de maneira íntima e minimalista com um vídeo no qual, só com seu violão, o dia vai amanhecendo enquanto sua aparência vai mudando. O cabelo longo e solto fica trançado e, depois, o comprimento desaparece.
O que não se perde no novo disco é a ligação de Yndi com um universo contemporâneo do qual sempre fez parte, o dos animes, da animação e dos video games. Em todos os clipes que lançou para os singles que promoveram o álbum, criou cenários e personagens, convidando artistas com traços diferentes para expor os temas que aborda. Começando por “Novo Mundo”, que evoca um clima onírico – presente, aliás, na maioria das canções –, reforçado pela presença de cordas no arranjo, com uma personagem que vivencia uma transformação, um renascimento, conhecendo o outro lado da vida. Negra com traços arredondados e membros desproporcionais, a protagonista do clipe[1] às vezes lembra o “Abaporu” ou “A caipirinha” de Tarsila. No cenário de natureza colorida e construções interioranas, sempre desfocado e se desfazendo em imagens caleidoscópicas, a personagem “viaja” ao fazer uma oferenda a Oxum.
A faixa título do disco é, de fato, um eixo temático central, cuja letra é uma confissão ou um manifesto em relação à ancestralidade:
Mon ancêtre n’a pas de nom
Son exil est éternel
Les larmes que nous pleurons
Ne nous appartiennent pas
D’azur et de soufre
Sont les sacrifices
Qu’emportera le silence
Le nom de mon pays
Brûle dans mon sang
Ses terres sont loin d’ici
Au delà de la nuit
Enfants de l’oubli
Vos souvenirs sont le sel de l’océan
Le nom de mon pays
Se brise dans le vent
Son aube est un récif
Qui traverse la nuit
Enfants de l’oubli
Vos visages sont le dernier océan
Mon ancêtre n’a pas nom
Son pays tout comme le mien
Est plus loin que l’horizon
Jamais son corps ne fut sien
Amer Amérique
Sous le bleu du vitrail
Le parfum du sacrifice
Sous la pointe du corail
Le pourpre des cicatrices
Amer Amérique
Para além de suas características puramente estéticas, a faixa encara os fluxos criativos de rotas difíceis de navegação, cuja complexidade intrínseca aos cruzamentos culturais trazem situações múltiplas de uma realidade histórica, tanto para a música negra contemporânea, como outrora fora o jazz e o soul, por exemplo – sem que nenhuma delas possa ser considerada um bloco único com relação às suas características raciais e culturais, influências etc. Em O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência, Paul Gilroy sublinha como o terror da escravidão que inaugura a modernidade (e que era indizível, mas não inexprimível) e sua expressão necessariamente dolorosa contribui “para memórias históricas inscritas e incorporadas no cerne volátil da criação cultural afro-atlântica”. No caso de Yndi, além de ela desenhar essa História inscrita em sua existência e em seu corpo, ela diz que muito do disco foi pensado e nasceu da “saudade”, uma saudade que não cura e nem se direciona para algo ou alguém em específico. É uma saudade que flutua pela água salgada, do mar ou de seu choro.
Há uma miríade de trabalhos cujas camadas de sonoridades, ritmos, letras, discursos e imaginação representam, ou melhor, incorporam, a compreensão de seus criadores como sendo, eles próprios, sujeitos de trajetórias fractais, originadas com a diáspora africana – entendendo-a não como sinônimo de movimento, mas como um conceito que reformula a própria ideia de constituição individual, do sujeito, do self e de sua relação com seu entorno. Poderia citar, na esteira do trabalho de Yndi, dois artistas brasileiros que, através de sua música, reconstituem linhas cosmo-políticas e elaboram sentimentos relativos às suas de desterritorializações: a baiana Luedji Luna e o pernambucano Zé Manoel.
Luedji, em seu primeiro disco, “Um corpo no mundo” aborda sua ancestralidade buscando as raízes originárias de um povo de onde descende, reverencia as lutas negras por libertação e independência e traz versos afiados sobre o trânsito dos navios negreiros. Na faixa título do disco, o percurso fica claro nos versos iniciais que dizem: “Atravessei o mar / Um sol da América do Sul me guia [...]Eu sou um corpo / Um ser/Um corpo só / Tem cor, tem corte / E a história do meu lugar / Eu sou a minha própria embarcação / Sou minha própria sorte [...] Olhares brancos me fitam / Há perigo nas esquinas”.
Em “Eu sou uma árvore bonita”, Luedji Luna faz referência a um dos artistas negros de destaque do estado da Bahia, representante nacional do reggae jamaicano, extraindo o título da faixa de um de seus versos da canção “Árvore”. A expansão dessas raízes, ou da busca pelas raízes primeiras, surgem diretamente em “Saudação Malunga”. Na crítica ao sistema escravista, canta “[...] tumbeiro não / Não sou marinheiro na barca furada / Sou malungueiro de partida à chegada”. Os malungos eram os escravos que vinham na mesma embarcação no tráfico negreiro, muitas vezes separados de seus familiares originais: “Da costa Brasil adentro / Mandinga e fé / Heranças, danças, tranças / Mafuá, Malungo reinventar / Ao manifesto kincongo, bois caimã / Marco primeira revolução Haiti / Partiu Trinidade, Suriname, Cuba / Ilhas malunguistas, meus parentes socialistas”.
Em seu segundo disco, “Bom mesmo é estar debaixo d’água”, Luedji cria outra relação com a água, sobretudo a salgada, que utiliza para aludir ao amor. Sua posição política e histórica no disco se volta sobremaneira à condição da mulher negra e aos primórdios do feminismo com a canção que intitula com a famosa frase da abolicionista e ativista dos direitos das mulheres Sojourner Truth, que também dá título ao importante livro de bell hooks: “Ain’t I a woman?”. Sua ideia é falar do amor dedicado à mulher negra, objetificada e menosprezada, vítima de dinâmicas que implodem as bases de sua autoestima. A faixa, no disco, é precedida de uma versão da música interpretada por Nina Simone, “Ain’t got no”, somada a um poema da escritora, também negra, Conceição Evaristo, que diz “A noite não adormece / Nos olhos das mulheres”.
Já Zé Manoel em seu último álbum, “Do meu coração nu”, cujo título é um verso da canção composta e cantada em francês em que diz que na distância, no vento e nos mares, estão os primos do deserto: “Bédouins, touaregs, nubiens et autres sahariens / Maghrébins, nomades, frères du Sahel / Et tous mes parents africains / D’où je viens / Qui sont mes ancêtres / Où sont passées les racines de nôtre histoire”, cuja continuação é uma súplica em que diz que no fundo de si, no mais profundo de seu coração nu, vive a falta do que nunca conheceu. O single que preconizou o álbum ao mundo foi a faixa “História Antiga”, que critica a política de genocídio praticada pelo Estado brasileiro contra a população negra e periférica, citando o caso de Evaldo Santos, morto por um ataque com 80 tiros do exército contra seu carro no Rio de Janeiro. Zé Manoel adiciona ainda recursos discursivos de importantes figuras da cultura negra nas faixas, como uma fala da historiadora Beatriz Nascimento e outra do maestro Letieres Leite sobre a origem africana de praticamente todas as músicas populares feitas no Brasil.
Ao compor “Noir Brésil”, o álbum, Yndi diz que começou trabalhando com samples de percussões de Carlinhos Brown, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre outras coisas que ia cortando e fazendo uma colagem: “É assim que eu trabalho, eu gosto de colagem mesmo, eu não penso que eu sou artista que inventa coisa [...] Penso que a minha colagem é o mais pessoal, mas se você vir é um monte de coisa que eu gosto e que eu coloco junto, mas da minha maneira”. É o que realiza no clipe da faixa título, em que reuniu imagens de manifestações culturais afro-brasileiras diversas, incluindo também, claro, samba e futebol, mas resgatando congados e reisados, candomblé e capoeira; em sobreposição a essas imagens, animações de um anime com uma personagem negra. A insistência da compositora era não reunir imagens que remetessem ou explicitassem o sofrimento do povo negro, para iniciar uma nova história de representação. Ela comentou em entrevista: “aqui na França tem muitas pessoas pretas, mas não tanto do Brasil, porque a imigração brasileira não é tão grande, mas o que é interessante, pelos meus pais virem do Brasil, é que a gente tem uma ligação com os outros aqui que são tipo do Mali, ou que são do Congo, que são de Guadalupe ou Martinica, e a gente não é dos mesmos países, não é a mesma música, não é a mesma língua, mas tem uma, não é solidariedade, mas a gente entende que as nossas famílias, as nossas trajetórias, as nossas histórias têm muitas coisas em comum. E por isso que eu fiquei feliz que tem muitas pessoas daqui que que viram o clipe do Noir Brésil e que falaram ‘ah, eu sou das Antilhas, mas o clipe me tocou muito, pelas imagens que eu vi, não sabia que tinha no Brasil, mas parece as coisas que têm no meu país, o que meu pai, ou a minha avó, me mostrou’. Então é isso também que eu gostaria de trabalhar mais, pan-africana sabe? Que faz uma ligação entre muitos países do mundo, que não a mesma língua, não tem a mesma religião, mas tem essa coisa que vem da África e que também nos liga de um jeito”.
Essa fala de Yndi mostra que não apenas ela tem tentado incorporar elementos do Pan-Africanismo em sua música, como sua percepção de sua experiência e seu entorno lembra, mais uma vez, as ideias de Gilroy a respeito do Atlântico Negro, negando os padrões aprisionadores e ultrapassados de uma história meramente pautada pela ideia de nacionalismo, mas assume uma abordagem cosmopolita que não está presa à terra, mas à fluidez.
A montagem do clipe de “Noir Brésil” faz com que as imagens e seus movimentos sincronizem com o ritmo das camadas percussivas da música. Para fazer esse disco, Yndi convidou as percussionistas brasileiras radicadas na França do grupo Zalindê, das quais participaram Lili Nascimento, Marina Uehara, Roberta e Leah Paim.
Na música “Nuit”, assistimos uma jornada aflita e pouco concreta. Acompanha a música um clipe de imagens do jogo de vídeo game de mesmo nome lançado para promoção da faixa, compatível com os sistemas IOS e Android. A noite, como diz a letra, desperta fúria e rancor, enquanto as figuras sem rosto passeiam por lugares imaginados, e que revela uma busca por encontrar a própria inocência, cujas reminiscências ficam na capacidade de imaginação. Por isso Yndi defende que animações e os jogos não são exclusivamente para crianças e adolescentes. Emerge também em “Nuit” a melancolia, que já estava presente no Dream Koala, mas mais através de uma ambiência sonora do que no novo disco.
A melancolia aparece em mais duas faixas nas quais o lado pop eletrônico fica suspenso para dar lugar a uma reverência à Bossa Nova, “O canto das ondas” e “Saudade”. Na primeira, evocando o natural e o tropical, com marcação típica do samba, que inclui até cuíca, Yndi volta às águas salgadas, do mar e das lágrimas, “o mar foi nunca voltou [...] o sal foi nunca voltou / já chorei demais / só o canto das ondas pode me curar”. Na segunda, ainda que continue mesclando português e francês, utiliza como título uma das palavras mais emblemáticas de nossa língua. A saudade é expressada como um algo que o “coração nunca vai curar”. A voz, assim como na maioria das músicas do álbum, soa doce, quase sussurrada, caracterizada pelo seu falsete. E é favorecida em “Dia de carnaval”, na qual o instrumental é dispensado para dar lugar apenas ao violão.
“Sou melancólica mesmo, eu acho que a música é a forma de eu achar um equilíbrio e viver com isso, conseguir me exprimir [...] acho que o álbum é um álbum melancólico, que tem essa saudade e uma mistura de um monte de coisa que eu estava pensando em sobre sair da França. E era um período em que tinham muitas discussões aqui na França sobre a identidade do país, a imigração, o que quer dizer ser francês, muito na televisão e no rádio as discussões sobre isso. Então, claro que eu fiquei também me perguntando, questionando minha identidade. Eu ser francesa, mas não conseguir ser considerada assim 100% francesa pelos outros, mas por mim também não. E eu não sou brasileira, essa coisa de não se sentir em casa em nenhum lugar, sempre ser considerada estrangeira onde você fica, também inspirou esse álbum. O oceano é uma coisa que eu escrevo muito, porque você pode usar diferentes partes, pode ser o lado mais impressionante, gigante, pode ser o lado mais doce, do verão, que é mais calmo, e tem também o lado da História, do oceano Atlântico que liga a Europa e a América, com todos os dramas que a gente conhece, mas que é a distância entre minha família e eu”.
Numa espécie de dialética entre o que é contemporâneo e o que é tradição, Yndi exprime uma arte que media sua criatividade individual, sua trajetória e uma dinâmica social e cultural que a circunda. É a música que estabelece tal comunicação, incorporando ambos os elementos para narrar uma América em que a amargura das dores da escravidão é intrínseca – no “refrão” de “Noir Brésil” repete o verso “Amer América”, que brinca com as palavras amarga e América, uma contida na outra na língua francesa. Assim como os citados exemplos de Luedji Luna e Zé Manoel, bem como Yndi, todos eles recorrem a diversas linguagens artísticas para composição de seus universos. Mais uma vez uma ideia de Gilroy pode ser pertinente para pensar a conexão estre essas produções, quando ele diz: “Os diálogos intensos e muitas vezes amargos que acionam o movimento das artes negras oferecem um pequeno lembrete de que há um momento democrático, comunitário, sacralizado no uso de antífonas [“som em resposta”] que simboliza e antecipa (mas não garante) relações sociais novas, de não-dominação. As fronteiras entre o eu e o outro são borradas, e formas especiais de prazer são criadas em decorrência dos encontros e das conversas que são estabelecidas entre um eu racial fraturado, incompleto e inacabado e os outros”.
A viagem sonora de “Noir Brésil” começa “Ailleurs” (Em outro lugar) e termina no “Eden”. E nesse trajeto de busca pela identidade e melancolia, imaginação e saudade, houve lugar ainda para se falar da luta feminina, personificada da figura da “Amazona”. Enquanto a descreve como a guerreira que não tem medo de morrer, a música se adensa pelo toque do timbal. No game do nosso ano das trevas, talvez seja a personagem mais adequada a se escolher para jogar, já que, tanto na França, quanto no Brasil, o fascismo parece soprar mais forte do que como apenas um vento passageiro. E não serão as elites que incorporarão a responsabilidade pelas vidas desviantes dos padrões ideais colonizadores.
Nota
[1] Animações feitas por Benjamin Geffroy - Nina-Lou Giachetti
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