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Foto do escritora palavra solta

O outono do pateta

por Flávio Morgado



Wilson Witzel em formatura de Oficiais da Polícia Militar em 2019. Fonte: G1




A Rua Professor Valadares, no bairro do Grajaú, zona norte do Rio de Janeiro, é uma rua pacata, bem característica da região: muros baixos, arquitetura remanescente de uma zona norte que conviveu com uma certa aristocracia no século XIX, mas que, como poucos bairros do subúrbio, ainda conseguiu manter alguma dignidade em suas fachadas e manter-se uma área estritamente residencial em meio à especulação imobiliária ao redor.


A impressão de um transeunte que não conhece o bairro é a de que todas as ruas são bem parecidas, todas elas guardam alguns aposentados e jardins bem cuidados e irão em algum momento desembocar em uma praça bucólica no meio do bairro. Com um perfil mais conservador, eu diria que o Grajaú resiste entre a cafonice predial que o cerca e os últimos exemplares de aposentados dignos. Todos os muros traduzem essa tensão. Cada novo terreno comprado no bairro é a iminência de uma suntuosidade burguesa – que as outras casas resistem até onde dá. Na Professor Valadares, rua que ainda tem poucos prédios, o mais próximo disso é a casa 177.


Com seu muro alto, sua ostensiva porta preta, como se a porta já antecipasse o valor dos automóveis que ela guarda, janelas sempre fechadas, uma estética mais próxima a um escritório de advocacia do que de um lar e a estrutura de um duplex que não dialoga em nada com o bairro, há a casa de nosso governador afastado, Wilson Witzel.



No início da década de 90, quando o paulista de Jundiaí, descendente de alemães, Wilson Witzel foi aprovado no concurso do Instituto de Previdência do Município do Rio de Janeiro, passou a morar no bairro de Vila Isabel; mas, após uma separação e entender que sua casa não era “adequada” a receber seus amigos magistrados – à época já havia passado no concurso de Juiz Federal –, Witzel investe mais de 700 mil reais em sua nova casa no Grajaú.

Sua chegada ao bairro pode ser comparada com sua chegada à política. Como um forasteiro, como um novo rico. Em sua cabeça, repaginado, recém-casado com uma de suas alunas, aprovado em um dos concursos mais desejados da magistratura, preparado aos amigos poderosos, Witzel tinha certeza que chegaria como uma solução: uma autoridade afinal. E, no mesmo espírito que exigiu em seu segundo ano como juiz federal a presença de uma escolta policial (ainda que trabalhasse na vara cível), sua presença magnânima certamente iluminaria o lugar, traria grandeza, daria uma velatura “couchê” ao bairro suburbano. Bem possível que para os moradores da rua tenha soado apenas como mais um novo rico: um emergente em recém-decadência da Barra da Tijuca ou um novo dono de oficina. A verdade é que Witzel tem poucos amigos.


Poucos amigos, mas muita confiança. Lendo um perfil escrito por Allan de Abreu à Revista Piauí sobre o então governador Wilson Witzel, é possível pescar alguns causos de sua juventude como quase fundamentais para entender essa psique que está sempre no árduo limite em confiar muito em si e cair facilmente no ridículo. Witzel, sem qualquer predicado, sempre se atribuiu à narrativa do herói. Quando era um fuzileiro naval na Zona da Mata Mineira (seu apelido, na toada do mais puro deboche, era Rambo), no auge de seus 23 anos, Witzel precisou chefiar uma breve expedição à selva (como é chamado esse tipo de treinamento intensivo na mata pelas Forças Armadas), e ao se deparar com uma encruzilhada, visivelmente perdido, rompeu todos os protocolos dos militares e projetou-se como um salvador. Seus comandados iriam para um lado, e ele, sozinho e líder, iria para o outro. Obviamente todos se perderam, mas a vereda escolhida por Witzel era ainda mais pantanosa. Perdido, tendo abandonado seus comandados, falhando completamente na missão e obrigando o cancelamento do churrasco de confraternização após o treinamento, Witzel apareceu esfarrapado e faminto após dois dias de busca e a quase uma necessidade de montagem de operação de resgate. Alguns tinham certeza que o segundo-tenente já havia morrido. Outros, apenas esperavam destilando todo seu ódio por essa patetice. No perfil da Piauí, Allan de Abreu narra uma recepção um tanto calorosa:


O capitão de fragata Renato Lins Furtado, comandante dos fuzileiros, já cogitava mandar toda a tropa de volta para o Rio de Janeiro e providenciar uma operação de busca e salvamento, quando, no segundo dia de espera, o tenente Witzel surgiu no horizonte. Estava cansado, coberto de lama, com fome e o semblante assustado. Chegou explicando-se: “Escorreguei num barranco e minha pistola saiu do coldre. Fui procurá-la e me perdi.” O comandante Furtado estava furioso, pois tudo começara com a decisão errada na encruzilhada, e esbravejou: “Uítzel, quando chegarmos ao quartel, vou comer a sua bunda!”

Ali já era o destemido Witzel dando as caras. O que lhe faltou sempre foi estratégia. Tentou entrar na política batendo de porta em porta, buscando um gabinete padrinho, e como representava a magistratura, sabia muito bem onde e com quem circular. Mas sempre foi visto como um outsider, um juiz bajulador, um professor superficial e ausente (Witzel também é professor de Direito da UERJ). Num mundo cheio de interesses, o juiz não parecia ter tantos predicados para uma classe acostumada a ter suas autoridades de estimação e que, àquela altura, vivia sob o esquema de corrupção mais entranhado de sua história. Daí que o PMDB (atual MDB) tenha sido o primeiro partido a bater a porta na cara do juiz.



Wilson Witzel e Jair Bolsonaro. Fonte: UOL



Mas, apesar da negativa do partido mais fisiologista da História do país, Witzel soube se aproximar naquele momento de Mário Peixoto, um empresário com contratos com o governo estadual e seu futuro aliado.


Amizade esta que se iniciou, sobretudo, durante o mandato de Sérgio Cabral no governo do Rio de Janeiro que, como já sabido por toda mídia, tornou o estado uma verdadeira máquina, um estratagema de desvio público. E, desde voos de helicóptero com o poodle do governador, passando por carros fortes de dinheiro de compra de votos circulando nos dias eleitorais, a até um esquema muito bem elaborado de desvio de recursos públicos a partir de licitações, a dinastia Cabral marcou a cidade como um canteiro de obras e estas obras imprimiram-se como os túneis orçamentários que ligavam a saúde financeira do estado aos bolsos de grupos e mais grupos corruptos.


Mário Peixoto pertencia a uma espécie de “grupo das hienas”, numa clara referência ao animal que se alimenta de carniça, e do movimento de bastidores de grupos menos abastados no esquema de contratos com o governo, torcendo por um lugar ao sol, uma subida na hierarquia ou nas tramoias de substituição dos grupos do poder. Peixoto, apesar de milionário, esperava se tornar um dos principais “parceiros” do governo estadual, mas esse lugar já era ocupado.


Daí que se junte o útil ao agradável. Em um contexto de mais de cinco ex-governadores do estado presos, a política sendo absolutamente criminalizada na mídia e assim abrindo espaço ao discurso outsider – e não existe “de fora da política”, o que aconteceu foi que o mercado se desavergonhou de comprar candidatos e passou a se candidatar sob o sofisma da idoneidade –, surgiram candidatos como Wilson Witzel.


Em outubro de 2018, menos de um mês antes das eleições, Wilson Witzel era um candidato do Partido Social Cristão (que assumiu o espectro da extrema-direita junto com o PSL, então partido de Bolsonaro), apadrinhado pelo Pastor Everaldo (um dos pastores mais mal-intencionados da República) e com pouco mais de 1% das intenções de voto. O alinhamento ao discurso jurídico e necropolítico, afamado pelo “herói nacional” Sergio Moro, e a repentina guinada dos Bolsonaros em sua direção transformaram o desconhecido em um fenômeno. Surpreendeu ainda no primeiro turno e, no segundo, venceu um político tradicional da cidade: reafirmando o que, em 2018, significou a falência do discurso político, e que dois anos depois, em seu primeiro teste eleitoral, já demonstra as suas fundamentais fragilidades.


Eleito, Witzel começou a pavimentar e a crer em sua narrativa heroica: era mais que um eleito, era O escolhido. Mudou-se para o Palácio das Laranjeiras, uma prática considerada cafona por muitos dos políticos; mandou confeccionar uma faixa “presidencial” (com direito a duas versões) para a sua posse de Governador, e essa mesma fissura pela faixa “presidencial” seria seu veneno dentro da política.



A posse do governador do estado do Rio de Janeiro em 2019. Fonte: Governo do RJ



Em seus primeiros meses logo choca a população com seu temperamento intempestivo e demagogo. Posa fardado como um policial de Operações Especiais, faz flexões vergonhosas em treinamentos militares, se alinha ao discurso bolsonarista a ponto de ser um dos mais radicais: “se você é morador do Rio, saia com uma bíblia debaixo do braço. Porque se você sair armado, nós vamos te matar”. Um cenário distópico, como se depois de todo esse pesadelo vivido pelo estado, ainda estaríamos vivos para ver um governador que se comporta como um boneco Comandos em Ação, que comemora e filma a execução de um sequestrador, que grita do alto de um helicóptero da Polícia Militar em operação: “mira na cabecinha!”. Witzel chocava o bom senso, mas ia bem alinhado ao discurso de ódio que elegemos em 2018.



O governador e um policial do batalhão de Operações Especiais da PMERJ. Fonte: El Pais



Até que a soberba lhe tomou. Talvez, a mesma que o tenha feito pensar naquela Mata Mineira que, se ele resolvesse sozinho, teria um destaque maior; ou quando imediatamente vendeu sua casa em Vila Isabel e separou-se de sua mulher ao ser foi aprovado em um concurso federal, porque, talvez, aquela vida já fosse pouca para o seu tamanho. Da casa no Grajaú, pensada como um palacete, ou do Palácio das Laranjeiras, finalmente um palácio a abrigar esse rei. A verdade é que Witzel sempre teve certeza de que era um predestinado, e a essa condição, resta a solitária capacidade de confiar em suas intuições e não se deixar levar pelos interesses alheios. Provavelmente foi disso que ele se muniu quando em dois meses de mandato anunciou que pretenderia a Presidência da República.


Como um eremita delirante, alguém que sempre dá passos maiores que as pernas, o governador cutucou Jair Bolsonaro e foi taxado de traidor e ingrato. Recebeu a acusação como capital político e em dois momentos que ele poderia ter sido crucial para a queda da Família Bolsonaro, ele ousou, mas esqueceu que a política é um grande rinha e que ali ele era cachorro pequeno. Num primeiro momento, houve a indisposição com seu antigo aliado Flávio Bolsonaro, deixou de atender aos desmandos do herdeiro do capitão e, por outro lado, pressionou quanto aos esquemas das “rachadinhas” nos tribunais estaduais. Estratégia que apesar de abrupta, até hoje segue fazendo o 01 sangrar.



Wilson Witzel quebra a placa em homenagem à Marielle Franco junto com dois candidatos à deputado pelo PSL em comício na cidade de Petrópolis, 2018. Fonte: G1



Mas a carta na manga sempre foi o caso Marielle Franco. O mesmo governador que se tornou famoso após um comício quebrar a placa em homenagem à vereadora assassinada, por uma guinada política atravessada por sua própria vaidade, agora se tornaria o principal inimigo da Família Bolsonaro na resolução do caso. Era dele o controle sobre as forças de investigação e conforme a tensão política crescia entre os antigos aliados, mas a investigação se aproximava do Presidente. A primeira votação de impeachment de Witzel foi aberta duas semanas após chegarem aos executores do crime: um deles é vizinho de Jair Bolsonaro.


Destemido, porém guloso, Witzel deixava um rastro de destruição. No auge da pandemia, adotando uma postura meramente política de isolamento social (já que a Presidência sempre se mostrou radicalmente contra), o governador nem por isso parecia preocupado com a saúde pública. Seu processo de impeachment se dá após o vazamento e delações (incluindo empresários que o financiaram) de um terrível esquema de desvio de recursos destinados ao combate à pandemia, indo diretamente para o escritório da primeira-dama. Witzel, como Cabral, perdeu para a hybris, o exagero, a gula. Só que, se de um lado o antigo governador era mais prestigiado e experiente, a inexperiência de Wilson Witzel se traduz em gestos brutos, covardes, capaz de raspar um prato que já não tem mais absolutamente nada. Seu esquema era notório, e mesmo sem qualquer apoio da Câmara, Witzel se mantinha confiante de que seu poder político só crescia. Peixoto, seu antigo parceiro, e antes possuidor da patente das hienas, conhecia todos os trâmites e só fez incluir seu apadrinhado no topo desse esquema com o preço de ser finalmente “o maior parceiro do estado do RJ”. Foi o primeiro a delatar o governador.


Depois de duas votações acachapantes na Assembleia Estadual e uma série de decisões monocráticas do Judiciário (o que denota seu baixo prestígio), Wilson Witzel é afastado do cargo. Em um de seus últimos atos despóticos, convoca uma coletiva já afastado e nela destila seus anseios fumando um charuto cubano, chamando seus serviçais e ainda no Palácio das Laranjeiras. A postura cai mal na mídia e dois dias depois uma ordem de despejo devolve o governador à casa do Grajaú.



Wilson Witzel concede entrevista no Palácio das Laranjeiras. Fonte: O Globo



Com uma viatura policial na porta e alguns curiosos, a casa 177 da rua Professor Valadares é constantemente assediada por equipes de filmagens e alguns revoltados. Quando virei sua esquina e intui que pela ostentação, só poderia ser essa a casa de Wilson Witzel, resolvi conferir com um dos guardadores de carros do local: “Sim! Aquela ali é a casa do Pateta!”. E percebi o tamanho de sua solidão.




Witzel comemora o sucesso de ação policial em 2019. Fonte: Gazeta de Notícias




Rio de Janeiro, 17 de novembro de 2020


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