por Leonardo Villa-Forte (autor convidado)
Há poucos dias o candidato Jair Bolsonaro compareceu ao Jornal Nacional, programa em que deu uma entrevista de tom mais ameno do que o seu de costume. Continuou sendo reativo e simplório como de hábito, mas menos raivoso e flagrantemente histriônico. Infelizmente, uma série de temas de máxima relevância – como a fome e a alta dos preços nos supermercados – deixou de ser trazida da forma que merecia à conversa. Qual o projeto do candidato para atacar essas questões? Não foi ali que pudemos conhecer. Não sei se há como conhece-las em outro lugar. No entanto, pelas redes observei que, daquela noite, o conteúdo mais compartilhado foi a imagem da palma da mão do presidente, na qual enxergava-se estranhos rabiscos.
Algumas boas cabeças do nosso país, entre intelectuais e políticos, fizeram postagens tomando esta imagem da palma da mão rabiscada como tema. Parte das postagens tentava aplicar uma lição no presidente e supostamente desmascará-lo, interpretando que Jair havia feito uma cola na mão como um mau aluno que tenta trapacear na prova. Ou seja: ele seria desonesto. Outra parte caçoava de sua burrice e falta de cuidado, pois aquelas seriam anotações que Jair ingenuamente esquecera de apagar. Ou seja: ele seria negligente e desatento. Houve até reportagens baseadas na interpretação de que o entrevistado teria falhado em suas intenções porque, mesmo tendo levado quatro temas anotados na mão, a fim de lembrar de mencioná-los, não conseguira abordá-los nem por um segundo durante os 40 minutos de conversa. Talvez todos esses tipos de análise tenham sido apressados, marcados pela lógica de reação instantânea demandada pelas rede ou da correria pela notícia, porque os rabiscos na palma da mão não são nem uma coisa nem outra. Muito menos a terceira. Jair adoraria que os progressistas o interpretassem da maneira como fizeram esses textos – eles fisgaram a isca. Mas quem escuta Steve Bannon não dá ponto sem nó.
A palma da mão rabiscada – a mão esquerda, para a câmera pegar bem – segue uma estratégia com três setas: em primeiro lugar, a imagem induz pessoas de esquerda a falarem e falarem e falarem da cola na mão como um esquecimento de amador, uma coisa chucra, de quem não tem o mínimo preparo e cuidado. É isca. Ao levar a pessoa a atentar para a estética (tosca) e a moral (um mau exemplo para nossos alunos), é criado um redemoinho que draga toda a conversa para si, como um vento que levanta a poeira do solo e a mantém circulando, agitada, sem que haja nada em seu centro. Ao mesmo tempo, com nossos textos focados no amadorismo, no bisonho, na tosquice e no mau exemplo, contribuímos para erguer um escudo contra temas mais urgentes.
Em segundo lugar, a imagem produzida por Jair faz com que todos aqueles que em algum momento colaram na escola, assim como as pessoas que se sentem parte ou já foram apontadas como parte do grupo dos “piores alunos da escola”, identifiquem-se com ele. A imagem projeta “eu sou como vocês, sou do povão, não sou ninguém especial”. Quem foi mau aluno sente que, por tabela, pode ser bem sucedido, pode ter reconhecimento na vida, e fazer parte de um grupo apreciado. É uma convocação à identificação.
E, se interpretarmos os rabiscos como cola não apagada, Jair ainda teria feito mais: não escondeu a cola, pelo contrário, exibiu-a na frente de todo mundo. Logo, ele seria uma pessoa destemida e transparente.
Por último, a escrita na palma da mão (lembro: a mão esquerda, a que apareceria melhor para a câmera) é um mecanismo de impulsionamento de buscas na internet pelos termos exibidos (Nicarágua, Colômbia, Argentina e o nome de um doleiro) – os quais seriam danosos para a imagem do petismo. É uma oferta de palavras-chave como sugestão para pesquisas. As buscas por essas informações realmente aumentaram.
Assim, a palma da mão rabiscada está longe de ser uma cola e uma trapaça de um mau exemplo. Está longe de ser anotações esquecidas por negligência. Longe de ser uma lista de temas que Jair deveria lembrar mas esqueceu de trazer à conversa. O entorno de Jair entendeu muito bem como, cada vez mais, uma imagem é um ponto em uma rede – uma teia – que se expande a partir daquela imagem. Ele e seu entorno não encontram pudores em se utilizar desta tática. O governo atual usa a estética e a performance como para-raios contra temas como a fome, a saúde, a corrupção e a falta de investimentos – querem manter a pauta estética, a moral e os bons costumes em alta. Compreenderem que a esquerda gosta de falar sobre estética. Querem que os progressistas dêem atenção a isto. Querem que critiquemos o paletó folgado com calça amarrotada, chinelo e camisa do Palmeiras. E que caçoemos da palavra em inglês escrita com um bizarro erro de ortografia no telão do encontro presidencial com diplomatas estrangeiros. Faz tempo caímos nessa isca (incluo-me, embora o objetivo aqui seja discutir a interpretação da mão rabiscada e não falar da mão em si, se é que podemos fazer essa distinção).
Então a imagem vira meme, é remixada por diferentes políticos, que inserem seus números de candidatura na palma da mão do candidato. Quem não quer ser fonte de mil remixes? Uma imagem é um hipertexto.
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Leonardo Villa-Forte é professor, escritor e pesquisador. Autor de Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI (menção honrosa no Prêmio Casa de Las Américas 2020), entre outros. Formado em Psicologia, Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade.
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