por Flávio Morgado
Fabular é a nossa capacidade de substituir a verdadeira realidade por uma aventura imaginária que serve para um conto ou novela. O que mais do que uma capacidade, é uma urgência, o ato de fabular é basicamente o que nos mantém sãos, vinculados a um fio de esperança, uma espécie de nesga de sol a mais sobre as nossas circunstâncias. Algumas fabulações possíveis nos inserem em uma linhagem eleita, outras um pertencimento a partir da diferença. Seja como for, fabular também tem sido um ato de classe.
Fotografia: Patrick Mendes
O sol: ele doía. Teriam dito os seus olhos cerrados, ao meio dia daquela Benfica em pleno verão carioca.
Ainda que tivesse passado os últimos dois anos dividindo uma cela de trinta e cinco metros quadrados com outros presos, e que ao menos duas vezes por semana fosse permitido um banho de sol, a inclemência do astro-rei naquela tarde de quarta-feira poderia cegar. Foi essa a sua primeira impressão, com cinco reais e cinquenta centavos no bolso: pouco mais que uma passagem de ônibus, de um destino que ele já sabia.
Seu nome é Pablo. Jovem, negro, nascido no município de Varre-Sai, interior do Rio de Janeiro, viveu até os doze anos com sua avó materna nos fundos de uma pensão que ela servia como auxiliar de serviços gerais, desde que aos nove anos presenciou a mãe, que sofria de distúrbios mentais, atear fogo ao próprio corpo em um de seus surtos. O pai, que nunca soube, é quem ainda assim marcaria sua assinatura: na primeira vez que foi parar na Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (a FEBEM), após a morte de sua avó, em uma das revistas semanais, um dos carcereiros olhou a lacuna em seu RG e imortalizou a alcunha – “ô, tu, sem pai!”. Imaginando que aquilo fosse uma espécie de apelido, dali em diante, foi assim que ele passou a se apresentar no reformatório: TusemPai.
Não fosse sua estatura, pouco mais de um metro e oitenta, e o fato de em uma das partidas de futebol entre os detentos ter despejado um acesso de raiva e pancadas contra um zagueiro do time adversário, TusemPai teria tido o destino de muitos daqueles menores naquele lugar: a violência sexual.
Independente da orientação sexual (ainda que a homossexualidade fosse violentada de uma forma “legitimada” também nessas condições, começando pela violência dos próprios agentes penitenciários), casais eram forçosamente formados entre os mais experientes, líderes de gangues, e os que entravam, sobretudo, os mais frágeis, mais assustados e mais novos. Um barbante era amarrado ao pulso desse menor, identificando que ele já tinha um “marido”, nenhum outro detento poderia abusar dele, sendo passível de retaliação caso isso fosse infringido, em geral, cortes no rosto ou, em alguns casos, o próprio homicídio. Os meninos que se assumiam homossexuais, sem a “proteção” de um líder, eram inseridos numa cadeia de prostituição infantil mediada e com divisão dos lucros, geralmente entre os líderes e os carcereiros.
Rebelião na FEBEM. Fotografia: Marcelo Justo/Folhapress
Foram seis anos sob a égide desse umbral, que só pode ser lido na chave dessa escuridão por quem a narra, porque sob as condições de nosso personagem (em que a maior condenação histórica sejam as barreiras que impedem sua própria forma de narrar) era apenas a vida sendo vivida. Então foram nesses termos que perdeu sua virgindade, aprendeu a se defender, a atacar e a entender, sempre na pele, as suas possibilidades. Aos dezoito anos, com a ficha limpa, um comportamento regular (não fosse o excesso de faltas ao educativo e algumas brigas mais violentas) e sem ter para onde ir, Pablo é solto. E desta primeira vez, era noite.
Passando as duas primeiras semanas nas ruas do Centro do Rio, lutando por marquises com outras pessoas em condição de rua, dormindo em horário trocado para evitar que fosse incinerado em algumas das crueldades que a noite permite, pedindo esmola e aflito, se viu obrigado a construir pontes na rua. Dormindo em um primeiro momento em um viaduto, cedido por uma família de mendigos, e depois, na marquise de um restaurante que uma vez por dia lhe doava refeição e permitia que após a meia noite ele pudesse dormir na frente da loja até a hora de abrir. Uma batida policial pôs fim a essa estadia depois de dois meses.
Com frequência, tinha sonhos com fogo. Sonhava com uma labareda tão acesa, que gerava perturbações terríveis e uma cegueira que durava os cinco primeiros minutos da manhã. A mensagem do horror emitida no suicídio de sua mãe seria para sempre incontornável. Nesses pesadelos, a fogueira era fria.
Com o estigma da detenção, Pablo entende a esquiva. Arruma um emprego de carregador no CEASA. Dez reais por viagem, trinta quilos de begônia nas costas. À beira da Avenida Brasil margeia uma cidade que sobra, Pablo gostava de se guiar pelos letreiros, o neon, os becos. Numa noite de descanso em um viaduto próximo ao Parque União, TusemPai conhece o crack.
O viaduto, lotado de moradores de rua, como uma cena distópica produzida pelo uso excessivo da droga, transforma indivíduos em projetos de zumbi, é lotado de dejetos, copos plásticos e um cheiro insuportável de borracha queimada.
O crack, uma droga que foi evitada até quando pôde pelos traficantes cariocas, é uma droga que atrai a população de rua (uma pedra de crack pode custar apenas um real), e isso poderia transformar as bocas de fumo em um lugar pouco atrativo aos usuários de maconha e cocaína nas zonas abastadas da cidade. Por outro lado, a liquidez do crack é assustadora: feito a partir do subproduto da cocaína, ainda que vendido a um preço irrisório, gerava lucros, sobretudo no quesito “fidelização” dos clientes. E ainda que queiramos romantizar qualquer consciência social na boca de fumo, a verdade é que o traficante, como qualquer contraventor, é um dinheirista. Bastou uma troca geracional nas facções e uma aliança com o tráfico de São Paulo, e a todo vapor o crack chegava ao Rio de Janeiro.
A adesão fácil da droga por parte dos moradores de rua não se dá só pelo baixo valor, mas o crack tem uma capacidade grande de inibir a fome e o sono, para os que entram em um vórtice de uso contínuo, os usuários podem atravessar uma semana sem comer ou dormir, só consumindo a droga, em geral, até o corpo não suportar mais.
Operação policial em área de usuários de crack na comunidade do Jacarezinho.
Foto: Domingos Peixoto/O Globo
Era a primeira vez que a rua lhe oferecia uma resposta acessível às suas dores: um real. Era a forma de se contornar as labaredas, a cegueira, a mãe. E foi assim que, seguindo o rastro da droga, ele dedicou oito meses de sua vida aos arredores da favela do Jacarezinho, uma favela plana na Zona Norte do Rio, com diversos pontos de venda de droga e a possibilidade do uso do crack na beira da linha férrea que liga o bairro a outros pontos da cidade. Ali o vício se tornou um eixo, e a sua subjetividade um funil do desejo da droga. Fora algumas poucas incursões fora da favela, apenas para pedir esmola ou garantir alguma refeição, TusemPai vivia na beira da linha do trem.
A área onde fica hoje a favela do Jacarezinho pertenceu à família do ex-presidente Getúlio Vargas até meados da década de 50, que doou o espaço para que famílias locais o ocupassem, em um gesto que ao mesmo tempo era populista e condescendente, uma vez que a ocupação dessas famílias se deu antes mesmo da legalização.
Conhecida como uma das maiores comunidades negras da cidade, há registros históricos que aproximam a construção da favela aos quilombos da época da escravatura. A bem da verdade, o resultado viável de uma abolição sem qualquer absorção social, e que somada a uma política de embranquecimento e gentrificação das zonas central e sul da cidade, o subúrbio era a narrativa imposta a essa parte da população. Seguindo apenas o rastro do crack, Pablo dá ao cachimbo a força de pertencimento que, um dia, uma camélia na lapela já teve naquele lugar. A história da comunidade seguiria até os dias de hoje, não sob a toada da violência, mas no que isto representa de sintoma de uma narrativa de exclusão.
Comunidade do Jacarezinho, Rio de Janeiro. Foto: Reprodução
Numa noite de véspera de Natal, o vício, as alucinações e o temor das labaredas levou Pablo ao desespero, num ímpeto agudo, como se estivesse em uma selva e fosse o momento do bote, correu em direção a uma senhora e, num gesto só, levou seu colar de ouro. O roubo renderia ao menos dez pedras na boca, não fosse a interceptação policial, cinco metros depois. Apanhou como nunca até o caminho da delegacia. Onde foi jogado em uma cela com mais vinte e dois detentos, e que só depois de dois meses ouvindo alguns presos conversar que ele saberia que tem direito a uma Defensoria Pública. No que o destino assina de sincronicidade, no dia de sua segunda prisão, era também aniversário do suicídio de sua mãe.
Por ter sido preso nos arredores da comunidade dominada pelo Comando Vermelho, TusemPai foi jogado em uma cela dominada pela facção, o que eventualmente o acabou protegendo (já que alguns detentos o reconheceram), mas que na intenção policial era a de jogar na cova dos leões um ladrãozinho do bairro, algo que era condenado pelos traficantes da região. Seu estado cadavérico pode ter gerado alguma comoção.
A cadeia para Pablo era uma segunda vez no reformatório, garantia comida, rotina, pressupunha alguma distância da droga (o que não aconteceu) e, da maneira mais perversa, até mesmo estar entre o que ele identificava como “os seus”. Se na FEBEM foi possível aprender que com alguma raiva se foge dos abusos, e que com algumas alianças se conquista até alguns privilégios, a cela em Benfica seria só mais uma especialização nessa sintaxe. Lá, TusemPai ganhou proteção dos traficantes locais, e ao saber que sua pena se encerraria em dois anos, os chefes da facção viram nele um potencial de entreposto com a favela quando estivesse em liberdade.
Agora era possível fabular. Depois de dois anos de detenção, seu destino deveria ser a volta ao Jacarezinho, sob a indicação de um antigo gerente, ele se tornaria vapor, teria um salário semanal de mil e duzentos reais, a garantia de seu vício sem esmolas e um propósito. (Qual?)
Na noite que antecedia sua liberdade, voltou a sonhar com labaredas. Que diferente das outras vezes, era um sonho maior, como se com os anos ele tivesse conquistado a capacidade de assistir a esse trauma sem o súbito susto de antes. A labareda farfalhava, já não era possível ver a madeira que a alimentava, mas no sonho, Pablo ia ao centro dessa iluminação. Como quem toma a real consciência de seu gesto, ele avança em direção à fogueira. Ao redor, tudo é turvo. Ao olhar para si, tudo que a fogueira acende, também se apaga. Ele desperta.
Enquanto isso, a poucos quilômetros da cadeia de Benfica, uma operação policial começa a ser formada naquela madrugada. Incomodados com o tráfico ostensivo da comunidade, tão próxima à Cidade da Polícia, policiais especializados em ações de confronto estudam as possibilidades de quebrar o morro. As operações policiais contam uma rasa erudição, e o batismo dessa seria a tradução de sua própria covardia: Troia.
Na favela, moradores cochicham entre os becos que a expansão de grupos de extermínio começava a acontecer na região: baculejos no ponto de ônibus, sumiços de usuários e assassinatos de assaltantes do comércio local. A “mineiragem” é uma prática que cresceu junto com a escalada do crime. Na cadeia, alguns presos ensinaram a TusemPai: “contra os cu azul, é sempre disposição, chora a mãe dele, não a tua!”. Mas também sempre fez parte desse estratagema necropolítico, o arrego, a chantagem, até mesmo o sequestro do acusado. O que chegava nas cadeias é que tinha acabado o desenrolo. Autoridades pediam tiros na “cabecinha”.
Naquela manhã ensolarada em que foi posto em liberdade, Pablo foi andando até a comunidade. Chegou sob a proteção dos traficantes locais na boca da praça e já segurou sua primeira responsa: uma carga de 35 papelotes de cocaína e uma Glock, dada após o certificado de confiança que partia da cadeia. Fechada a primeira semana de serviço, pingando a grana na mão, pela primeira vez Pablo sentiu o raso gozo das compras na feirinha da comunidade e dos olhares lascivos que o pequeno poder do tráfico imprime nas meninas do morro. Era um exílio possível, e até àquela altura, o melhor. Naquele universo restrito, como um rei de gaiola, as projeções de futuro poderiam ir além dos furtos diários e das esmolas, mas não muito além: ser o frente de uma boca era uma questão de tempo — basta ser o último a sobreviver.
Organizada a operação, a intenção era entrar no morro arrepiando: derrubar na marra todas as barricadas organizadas pelo tráfico e desarticular as principais bocas da comunidade na base da bala. O comboio teria mais de vinte policiais fortemente armados. A operação começaria nas primeiras horas da manhã. Na troca de turno entre os traficantes. A hora de Pablo.
Quando o Caveirão dobrou a esquina da principal rua da comunidade, uma barricada de concreto e pneus queimados impedia a passagem, um dos policiais resolve abrir o caminho e sai do carro blindado, a menos de dois passos dos pneus, um tiro de 762 atinge sua cabeça. O ataque ao policial vem como a justificativa de uma carnificina que passa a usar como critério a “ficha suja” para “cancelar os CPFs” do Jacarezinho.
Um helicóptero acompanha a operação. Entendida a gravidade, os traficantes começam a se render. Os dois primeiros que gritam “perdeu!”, e ainda assim são executados, desestimulam todos os outros, que sem alternativa, começam a fugir pela favela.
Encarregado de confiança da cadeia, cabia a TusemPai não só manusear (pela primeira vez) um fuzil, como proteger a arma em sua fuga. O contrabando não anda fácil e o valor de um fuzil pode chegar a quarenta mil reais. O jeito encontrado foi criar uma fila indiana que seguia pelas lajes das casas passando todo armamento até algumas das saídas da favela. O helicóptero, com metralhadoras, acompanha o movimento.
Fotografia: Reginaldo Pimenta/AFP
Depois de três saltos, TusemPai cruza o campo do Areal num pique só, o fuzil pesa 20kg, um terço de seu peso corporal, e a cena de sua fuga é uma ironia à imagem da imensa periculosidade de um traficante: àquela altura, um moleque que corria descalço e com a camisa tampando o rosto, enquanto seu fuzil travava e o muro se aproximava.
Cercado nas duas saídas do campo, TusemPai joga o fuzil no saibro, ajoelha e põe as duas mãos atrás da cabeça. O primeiro tiro atinge seu cotovelo esquerdo. A bala queima, o corpo assume um desespero incontornável, o horror está mais uma vez posto a sua frente e não há saída. Nunca houve.
Três tiros se seguem. Depois mais oito. Não há uma última palavra, um olhar terno, uma reminiscência. Pablo cai com os olhos abertos. Seu corpo é colocado em uma cadeira no meio da quadra, seu dedo é colocado na boca e seu corpo incinerado às nove horas de uma quarta-feira, uma forma da polícia deixar seu recado a todos.
Ninguém procurou reconhecer o corpo. Na manhã seguinte ele é enterrado em cova rasa e sem identificação nominal. Breve e estatístico, sem nenhuma exceção à narrativa que lhe foi imposta. Pablo foi antes de poder entender que a profecia é aquela mesma: a clareza é crua, sua vida era de impossível fabulação – seu sol é da ordem da dor. Continuaria a não saber como eram as camélias.
Reprodução: Twitter
Rio de Janeiro, 16 de maio de 2021
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*Este conto, eventualmente uma ficção, foi inspirado na descrição das 28 pessoas assassinadas na chacina do Jacarezinho em maio de 21. Dedico este conto ao meu irmão Thiago, que brilhantemente criou o nome (tão polissêmico ao mesmo tempo que direto) do personagem TusemPai.
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