por Pérola Mathias
Paulinho da Viola é um dos principais nomes da música brasileira há 6 décadas e continuará sendo enquanto houver história. Conhecido como Príncipe do Samba pela evidente elegância de sua figura e também pela fineza de seus versos e acordes, Paulinho completou 80 anos no dia 12 de novembro do ano passado. Porém, (ahhh, porém!) foi no último mês de março que ele deu início à turnê comemorativa de aniversário com um show lotado para mais de 3.000 pessoas em São Paulo.
No repertório apresentado, ele pinça seus maiores sucessos entremeados a escolhas que buscam contemplar o todo de sua obra. Mas também, tal como em todos os seus discos, ele deixou espaço para clássicos de outros compositores, como Monarco e Cartola. E, claro, algumas de suas parcerias com o parceiro de sempre, Elton Medeiros. A surpresa, no entanto, é entregue ao público logo de cara: Paulinho da Viola adentra o palco trajando uma camisa azul Portela sozinho, acompanhado apenas de uma caixa de fósforos, para entoar uma música inédita, que sequer foi gravada ainda e se chama “Ele”.
Depois, a banda completa entra, com direito a violão, piano elétrico, sopros, baixo, bateria e percussões. Ao todo, são sete músicos o acompanhando, o suficiente para que os sambas e choros escolhidos por Paulinho para serem apresentados ganhem vida e, como em cada show, ares de novidade. O fato se destaca por contrariar a demanda do mercado de que os cantores sejam acompanhados por formações enxutas, que facilitam a logística de viagens e a negociação dos cachês. A formação foi possível também por este ter sido o primeiro show de Paulinho da Viola após o período de pandemia.
E é assim que ele prossegue, emendando “Samba Original”, uma de suas primeiras composições, parceria com Elton Medeiros, registrada no álbum “Samba na Madrugada”, de 1966. O disco se tornou um clássico porque é o primeiro da carreira de Paulinho, foi gravado logo em seguida do sucesso do espetáculo Rosa de Ouro, que estreou em março de 1965, em que ele e Elton faziam percussão para acompanhar Clementina de Jesus e Araci Cortes. No disco que deveria se chamar apenas “Na madrugada”, mas teve seu título alterado pela gravadora, se eternizam os encontros dos dois amigos (e iniciantes na música) com grandes sambistas, frequentadores do Zicartola entre 1963 e 1965, como Zé Keti, o próprio Cartola e o portelense Candeia.
Paulo César Batista de Faria, o burocrata que foi salvo pelo samba
Ainda sem dar uma pausa para interagir com o público, Paulinho seguiu com “Eu canto samba”. A sequência reafirma o lugar em que ele esteve a vida toda, o samba. Se na canção anterior ele busca expandir a tradição, afirmando que aquele é um samba diferente, que “não fala das cadeiras da mulata / Do murmúrio da cascata / Ou do amor no carnaval”; na música seguinte, , gravada em 1989, o reafirma enquanto tradição - “Há muito tempo eu escuto esse papo furado / Dizendo que o samba acabou / Só se foi quando o dia clareou”.
Uma característica comum dos grandes sambas - e sambistas - é que eles têm a capacidade de entender e traduzir aspectos complexos da existência humana e da vida em sociedade. Exemplos: “O mundo é um moinho”, de Cartola; “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho; “O canto das três raças”, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro; etc. Paulinho tem não um, mas inúmeros sambas em que sua poesia é profunda, filosófica e, principalmente, diz o que precisa com simplicidade. “Nas ondas da noite”, apesar de não ser uma de suas canções principais, costura paralelos entre a vida, o amor e o samba. Está o tempo todo ali a compreensão (que se dá pela afirmação) de que tudo na vida é transitório: “Mas o samba se transforma como a vida / Assim com esta chama de amor”. A música foi gravada em seu disco homônimo de 1971.
“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”
Neste momento do show, Paulinho da Viola para, respira, fala um tímido “boa noite” e explica ao público o que apresentou até ali: uma canção inédita ainda não gravada e alguns de seus sambas principais - no caso, clássicos. E aí fica explícita a realeza do homem que, sendo uma lenda, não se faz de rogado para passar ao público um pouco de sua história, com uma timidez quase agoniante. E, então, ele diz que cantará sua parceria favorita com Elton Medeiros, “Onde a dor não tem razão”, que entoa a paz de um coração curado e pronto para o novo amor. E, neste processo, se livra do rancor, tem a semente do amor novamente brotada e é como a água de um lago tranquilo. A ação final? “Reabrir as janelas da vida” para cantar a felicidade.
Novamente, o jogo entre clássicos e músicas espalhadas pelo repertório da vida acontece. De “Memórias 1 Cantando”, álbum de 1976, ele resgata a faixa em que descreve uma figura clássica e misteriosa com “Vela no Breu”, uma ode ao sambista, ao malandro e, sobretudo, ao morador afrodecentente do morro que vive e sobrevive de suas sabedorias ancestrais. Esse disco foi gravado junto com “Memórias 2 Chorando”, uma dobradinha para exaltar as duas linhagens musicais a que pertenceu e cuidou até aqui, sendo o choro algo que o acompanha desde a infância, com as rodas promovidas pelo pai, também chorão, em que apareciam músicos como Jacob do Bandolim.
“O samba bem merecia / Ter ministério algum dia / Então seria ministro Paulo César Batista Faria” - Batatinha
Em diferentes entrevistas que deu ao longo da vida, Paulinho da Viola se disse insatisfeito com o que entregava na gravação de seus discos, achando que podia ter, sempre, mexido mais um pouquinho na composição, seja na letra, no arranjo, na melodia… E ele também já confessou ser um compositor de última hora. É na pressão que consegue finalizar, ou até mesmo começar, uma música que precisa ser entregue. Isso justificaria o hiato de décadas sem gravar discos com canções novas.
Mas há aquelas que Paulinho considera suas melhores músicas. E uma delas é “Coisas do mundo minha nega”. O jornalista João Máximo, em livro que desenha o perfil de Paulinho da Viola, diz que os sambas de Paulinho da Viola “se reparte entre muitos afluentes”, porque traz elementos de diferentes ritmos e são, muitas vezes difíceis de rotular. Há vestígios de valsa, bossa nova, samba enredo, sambas canções, partido alto e “samba-crônicas”. É nessa última que identifico “Coisas do mundo minha nega”, que descreve cenas cotidianas, ainda que extraordinárias, e que finda com um dos maiores versos de impacto do compositor:
Hoje eu vim, minha nega
Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo a forma de se viver
As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender
Imagino que não seja à toa que a música que Paulinho considera uma de suas melhores preceda a homenagem que ele faz aos que vieram antes dele: Monarco e Bubu. Ambos eram parte do que veio a se chamar a velha guarda da Portela. Monarco fez em “Passado de Glória” uma homenagem à história da escola de Oswaldo Cruz, que é, também, a escola de coração de Paulinho. De Bubu, um samba de amor, que ficou ainda mais conhecido quando foi gravado por Marisa Monte, “Esta melodia”.
“Antigamente era Paulo da Portela / Agora, É Paulinho da Viola [...] O passado e o presente da nossa querida Portela!”
Padrinho da velha guarda da Portela (junto com Clara Nunes, que deu voz a outro hino para a escola), Paulinho, a certa altura dos anos de 1960, se tornou o diretor da ala de compositores da escola. Ele para a música mais uma vez para contar a história de quando estava na casa de Hermínio Bello de Carvalho e completou uma canção que este estava fazendo, “Sei lá, Mangueira”. Só que ele não contava que Hermínio fosse inscrevê-la no festival de MPB da TV Record, em 1968. Paulinho se viu, obviamente, encrencado. E aí, pause na história, que se completa quando o show se encerra.
O mais inacreditável em ver Paulinho da Viola no palco comemorando seus 80 anos é poder fechar o olho e escutar sua voz, que continua límpida como se fosse o Paulinho de 24 anos gravando seu primeiro disco. E essa voz se torna um instrumento de destaque maior no momento mais emocionante do espetáculo. Todos os músicos deixam o palco, exceto o pianista Adriano Souza. Paulinho conta da sua não menos emocionante relação com Cartola, desenvolvida nos anos de Zicartola, que foram também os de sua estreia na música e de grande salto como sambista. E então, com as luzes do palco iluminando somente os dois músicos, Paulinho canta “Acontece”, acompanhado apenas do piano, diferente do arranjo de Lindolfo Gaya para a gravação de 1972 que nos habituamos a ouvir.
Das composições de outros sambistas que Paulinho gravou, não poderia ficarde fora na seleção dos 80 anos “Nervos de Aço”, de Lupicínio Rodrigues, que deu nome ao seu álbum de 1973. Este álbum conta, inclusive, com canções daquelas que João Máximo chamou de “difíceis de rotular”, como “Roendo as unhas” - que não entra no show, mas cujo arranjo é de um experimentalismo radical.
Paulinho da Viola: um sambista do futuro
Aliás, difícil de rotular e de poesia e formato únicos não só dentro da discografia de Paulinho, mas num âmbito mais geral da música brasileira, é “Sinal Fechado”, regravda por Maria Bethânia e Chico Buarque, que inclusive deu nome ao disco deste de 1974. Já na discografia de Paulinho, foi lançada em vinil de 7”, com quatro músicas: “Sinal Fechado” e “Foi um rio…” no lado A e “Ruas que sonhei” e “Nada de novo” no lado B. À época, a canção gerou discussão não apenas pelo contexto da ditadura militar, mas também por fugir ao samba tradicional. Ou seja, mais uma vez, mesmo sem alarde, Paulinho da Viola jogava com a história da música, sem nostalgia, mas também profundamente enraizado no passado.
Uma das pessoas que declararam que Paulinho devia explorar mais esse seu lado experimental de compor foi o poeta José Carlos Capinan. Eles se conheceram no período em que ambos moraram no famoso “Solar da Fossa” no período pré-tropicália e se tornaram parceiros de composição. Muitas declarações de Paulinho em entrevistas mostram que ele de fato não se apegava a fórmulas. Como quando a banda americana Ambitious Lovers, formada por Arto Lindsay e Peter Scherer apresentaram “Pra não contrariar você” com uma base de ruídos e sintetizadores. A declaração do sambista sobre o fato é sofisticada, ele disse aos jornais da época, sobre a versão, que “Ficou bonito, uma coisa meio pós-bossa nova. Criou-se um sistema terrível que determina o que é ‘in’ e o que é ‘out’. Eu nunca me considerei ‘out’, assim como nunca tive polêmicas com roqueiros. As pessoas não percebem que a vida flui de outra forma e que tudo é música – de Ataulpho Alves a Arto Lindsay”.
“Dança da solidão”, disco de 1972, foi o que teve mais canções contempladas no show. Incluindo a faixa título, “Acontece”, de Cartola, e “Coração Imprudente”. Essas últimas, fazendo parte do último bloco de músicas do show, que é uma seleção dos principais sucessos de Paulinho.
Paulinho da Viola tem 234 composições e 565 gravações e regravações por outros artistas e são as mais executadas dentre elas as escolhidas para o encerramento do show: “Pecado capital”, “Coração Leviano”, “Argumento”, “Bebadosamba” e “Timoneiro”. Por fim, o bis vem com a menos óbvia “Prisma Luminoso” e, claro, se encerra com a catarse de “Foi um rio que passou em minha vida”, a homenagem definitiva à Portela, que surgiu lá atrás na história de Paulinho como uma forma do compositor se desculpar por ter feito “Sei lá, Mangueira”. Nada como uma consciência pesada para fazer surgir um dos mais bonitos e inspirados sambas já feitos, né?
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