por Júlia Gonçalves
O livre-arbítrio é uma ilusão – ao menos é o que afirma a neurociência. O Arcano VI é a carta das escolhas, da dualidade, associada ao signo de gêmeos. Sua correspondência no baralho cigano é maior com a carta dos Caminhos do que com a carta do Coração. Há os que dizem que o nome confunde, mas creio que nada num arcano existe pra confundir e sim pra explicar. Afinal, onde se justifica a conexão entre o título romântico e a interpretação tradicional? Dentre os tarôs mais usados – Marselha e Rider Waite –, a carta sofre uma mudança de narrativa na sua imagem. No primeiro, mais antigo, a cena é um homem entre duas mulheres. A namorada e a mãe, a esposa e a amante, a tentação e a responsabilidade, o vício e a virtude, Kakia e Arete disputando a devoção de Hércules, a Profecia e a Sabedoria disputando o rei David, a escultura e a retórica disputando Luciano, o Jovem. São inúmeras as epopeias da escolha. A indecisão não é privilégio dos librianos, quando tomamos uma decisão o cérebro escolhe meio segundo antes da mente. O corpo escolhe por nós. Que alívio não tomar pra si toda a responsabilidade por um caminho ruim. Na França as decisões sobre eutanásia são responsabilidade do Estado e isso resulta numa melhoria evidente na saúde mental dos parentes do então morto. Pode ser terrível escolher às vezes.
O poeta abandona o vício pela virtude. Hércules na encruzilhada, François Boucher 1750 - óleo s/ tela 223 x 171 cm
A sociedade ocidental é apegada à possibilidade de escolha. A variedade de opções, um luxo capitalista, nos dá a falsa sensação de controle, por um lado. Esse nosso paladar burguês viciado em geleias de sabores diferentes nos diz que, se não podemos escolher onde morar, podemos escolher ao menos o que passar no pão. O que não te contam é que a escolha vem com um pacote de ansiedades anexo. Quando escolhemos a geleia de morango, deixamos de comer todas as outras, e nunca vamos saber se a de framboesa seria melhor ou não – ou vamos, numa próxima oportunidade. Ver a escolha como uma experiência ao invés de um compromisso é uma dica útil dos terapeutas. Se não der certo, outros dias virão, e agora sabemos: a de morango não é tão boa assim. Aí encontro a conexão que procurava, o título romântico se encaixa perfeitamente. Amar é uma escolha. Não falo de monogamia necessariamente, mas quando escolho dedicar meu tempo a algo ou alguém que amo deixo de dedica-lo a outras pessoas e tarefas. Para amar um ideal político, preciso deixar um pouco de lado outros pelos quais tenho apreço. Para me dedicar a uma relação que quero fortalecer, preciso escolhe-la. Somos múltiplos, claro, nos entediamos fácil, gostamos das distrações-tentações, mas pra ver a beleza nascer precisamos focar. Quem não conhece alguém que é bom em muitas coisas, mas não é especialista em nada? O ótimo é inimigo do bom, já disse outro por aí.
Rei David entre a Sabedoria e a Profecia, miniatura no Saltério de Paris, segunda metade do século X
O seis é o número da beleza, aliás. Dentre os arcanos menores, o seis mostra o aspecto mais bonito de cada naipe. Então há uma justificativa simbólica pros prazeres do Arcano VI. Enquanto nos Enamorados do tarô de Marselha vemos um homem no centro dividido entre duas mulheres, no tarô de Rider-Waite temos outra cena: uma mulher à frente da árvore do Conhecimento, um homem à frente de uma árvore em chamas e o anjo como figura central dividindo – ou unindo – ambos. O homem vê a mulher, mas a mulher só vê o anjo. Trabalhando com a linguagem antiga e heteronormativa dos estudos de arquétipos, o homem-animus precisa da mulher-anima pra conseguir enxergar o divino. O ego consciente olha curioso buscando respostas no mistério do Id selvagem no inconsciente, que protege o conhecimento, a serpente, o fruto. O desejo é a chave pra compreensão de si. O Estádio do Espelho na psicologia lacaniana conta uma história parecida: precisamos do outro pra nos enxergar e através disso encontrar nossa própria identidade. Seja pela semelhança ou pela diferença, o espelho enquanto outro também conta sobre nós, e por isso inspira desejo.
Carta Os Enamorados, tarô de Rider-Waite 1910
A neurociência já disse que o livre-arbítrio não existe, mas crer nele pode condicionar o funcionamento do cérebro e através disso o nosso comportamento. O determinismo e a ideia de destino como algo imutável por nossas mãos de carne nos permite ser moralmente corruptíveis, afinal, a responsabilidade não está mais conosco, não há muito o que fazer. Aparentemente crer no livre-arbítrio é uma ilusão necessária, precisamos desse senso de responsabilidade. Segundo um estudo feito na Universidade de Minnesota, a crença no livre-arbítrio promove honestidade, gratidão, reduz o estresse, a agressividade e aumenta a cooperação e a compaixão. O livre-arbítrio existe, mas apenas como construção social, o que não é pouco na verdade. Ajuda a construir uma sociedade mais saudável. A neurociência também diz que o nosso consciente só guarda memórias boas. O trauma vai pra uma gaveta escura do inconsciente e lá só o corpo lembra. Nem sempre a escolha mais sábia vem através da razão, às vezes temos que escutar o estômago – e ainda acredito que o estômago sim é o órgão do amor.