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Foto do escritora palavra solta

Paulo César Pinheiro, o mangueirense que compôs um hino à Portela

por Pérola Mathias



Fotografia: Ricardo Borges/Folhapress



Estreou nessa edição do festival É Tudo Verdade o filme “Paulo César Pinheiro – Letra e Alma” (2021), dirigido por Andrea Prates e Cleisson Vidal, no qual o próprio poeta narra momentos de sua trajetória através de suas principais composições, ilustradas com imagens de arquivos audiovisuais. Para o espectador que nutre curiosidades básicas sobre a figura de um dos mais importantes letristas da música brasileira, algumas perguntas são respondidas: onde nasceu, como e quando compôs a primeira música, quando considera que seu sucesso começou, como conheceu Clara Nunes, de onde vem sua inspiração, por que das temáticas relacionadas ao candomblé, à umbanda e à cultura afro-brasileira. Tudo isso em pouco menos de 1 hora e meia.


A canção “A viagem”, primeira composição feita ainda aos 16 anos quando descobriu a atração e a confiança que poderia estabelecer com o papel em branco e a caneta, fez sucesso e correu o país via as ondas de rádio na voz da cantora Marisa Gata Mansa. Das curiosidades que o filme não conta que envolvem a música: foi essa mesma canção que fez Gloria Bonfim sair da Bahia e ir para o Rio de Janeiro atrás do compositor – história para outro texto –; e a canção, antes de ser gravada por Marisa Gata Mansa, segundo conta Sérgio Cabral[1], foi dispensada por Elizete Cardoso. A Divina, apesar de ter feito a mesma coisa anos antes com “Acontece”, de Cartola – que chegou a gravar depois que a música alcançou sucesso –, não cantou “A viagem”, mas interpretou “Refém da Solidão”, uma das letras mais bonitas e das principais de nosso cancioneiro, parceria de Pinheiro com Baden Powell. Uma performance emocionante que podemos ver recuperada pelo filme de um show com os três artistas.


Mas antes de chegar até Baden, já então uma sumidade musical, o primeiro parceiro de Pinheiro foi o violonista João de Aquino, primo de Baden, que vê o potencial do letrista e passa a leva-lo, ainda menor de idade, para os encontros musicais dos artistas da Zona Sul – Nara Leão, Olivia Hime, Vinícius de Moraes, dentre outros. Quando finalmente o mestre violonista considera que o menino está “pronto” para que eles possam compor juntos, fazem o que veio a ser a música vencedora da I Bienal do Samba de 1968, “Lapinha”, interpretada por Elis Regina junto aos Originais do Samba. E daí surge um dos trechos mais deliciosos da história contada por Pinheiro, quando ele passa a morar com Baden na mesma casa, sempre dedicados a compor muitos sambas e onde não faltava cachaça. Só que, como sabemos, nessa época a relação de Baden com o álcool era bastante problemática.


Além da já citada “Refém da Solidão”, uma das maiores da dupla, que transcende o tempo, o espaço, as referências culturais de uma época específica, sai da leva de parceria entre o músico e o poeta “Vou deitar e rolar (Qua qua ra qua)”[2], ilustrada com Elis Regina cantando sentada sobre o piano, numa interpretação formidável. Infelizmente não consegui anotar, ao fim do filme, a referência do vídeo.



Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro


A parceria de Pinheiro com Baden ganhou os holofotes com o premiado samba de 1968, que está no disco “A Música de Baden Powell e Paulo César Pinheiro — Os Cantores de Lapinha” (1970), mas toda a luz que se direciona para a criação do poeta nessa fase clareia também um período turvo da história do país, o Golpe Militar de 1964. Os diretores do filme resgatam fotos do poeta trabalhando, seus rascunhos, cigarro aceso, mesa lotada de papeis e pés descalços sobre sandálias de couro. E ele narra como funcionava a censura do governo, cujos analistas das letras de canções eram, em geral, trabalhadores braçais de outras áreas, de baixa escolaridade, que liberavam ou deixavam passar os textos. “Sagarana”, inspirada na obra de Guimarães Rosa, por exemplo, foi vetada. Já “Pesadelo”, canção feita com a intenção de ser direta, sem metáforas, passa porque Pinheiro, que à época trabalhava numa gravadora, a coloca no bolo das músicas que seriam gravadas por Agnaldo Timóteo. O MPB4 chega a gravar a canção, mas, depois, obviamente, passa a ser censurada pelos próprios meios de comunicação que não queriam se comprometer.


Meio sem querer, Paulo César Pinheiro deu letra à uma melodia e tema romântico que lhe foi entregue por Maurício Tapajós e a dupla acabou emplacando um samba que serviu como uma espécie de hino da anistia na voz de Simone. “Tô voltando” foi gravado pela cantora baiana – e que depois apoiaria Collor – no disco “Aos Pedaços” (1979). Mas antes que a Nova República fosse gestada, muita vida e muitas canções hoje clássicas rolaram no caminho do poeta. Sobretudo, as que foram cantadas por quem ele declara que foi uma de suas maiores intérpretes (e olha que o páreo é duro): Clara Nunes, com quem se casou em 1975. No ano seguinte, a cantora gravou um de seus maiores sucessos, “O canto das três raças”, em disco de mesmo nome, de Pinheiro e Mauro Duarte. Mas não é esse episódio que ganha maior destaque no breve trecho dedicado à união amorosa e artística de Clara e Pinheiro, mas sim como surgiu “Portela na avenida”.



O casal Paulo Cesar Pinheiro e Clara Nunes




Desde o início do filme, a história de Paulo César Pinheiro narrada por ele mesmo percorre as ruas e morros do Rio de Janeiro: nasceu no que hoje seria o Complexo da Maré, cuja paisagem urbana se alterou e se densificou tanto que seria impossível ele voltar para reconhecer sua primeira casa, inclusive por causa da violência. Depois, morou na Mangueira e em São Cristóvão, mas consolidou a paixão pelos sambas da verde-rosa e dos compositores que soavam pelos alto falantes do morro. Até que, casado com Clara, ela lhe pediu uma música dedicada à Portela para inscrever no festival da escola e o poeta se viu numa sinuca de bico. Um samba para a concorrente? Mas como não atenderia um pedido da esposa?


E o pior da história, que não entrou no filme, mas que Paulo César Pinheiro já contou em outras entrevistas: o drama de fazer uma música para a Portela depois de “Foi um rio que passou em minha vida”, de Paulinho da Viola, lançada em 1969 e gravada em disco no ano seguinte, que não foi samba enredo da escola, mas que era muito cantada nos ensaios. Dez anos haviam se passado desde a composição de Paulinho da Viola e sua música continuava sendo uma unanimidade. Paulo César Pinheiro conta da dificuldade que enfrentou para que alguma ideia lhe ocorresse, até que a inspiração veio de dentro de sua própria casa: o altar com santos e orixás cultivado por Clara Nunes, onde tinha uma Nossa Senhora Aparecida, negra, com seu manto azul e branco, sob uma pomba do Espírito Santo. E assim, na cabeça do poeta, o sagrado encontrou o profano e caiu na avenida: “É a procissão do samba abençoando / A festa do divino carnaval”. A música ficou em segundo lugar no concurso em que foi inscrita e foi mais uma das parcerias de Pinheiro com Mauro Bolacha.


Portelense também era outro grande parceiro de Paulo César Pinheiro, João Nogueira, com quem compôs “Mineira”, homenagem à Clara. Essa amizade é mais um capítulo especial da trajetória do poeta, a qual o filme de Prates e Vidal dedicam imagens lindíssimas de rodas de samba, com muita cerveja, sorrisos, cantoria e aglomeração. Além de shows e discos juntos, a parceria gerou outros clássicos, como “Espelho” e “Poder da criação”.


A história de “Portela na avenida” complementa um pensamento ou modus operandi da criação de Paulo César Pinheiro, que cultiva uma visão peculiar sobre inspiração e como o mundo funciona. Segundo ele, a falta de inspiração nunca o preocupou, pois sempre confiou que em algum momento a letra que precisava fazer viria, fosse como fosse: em sonho, inteira, via um detalhe que o atiçasse. Ele expõe no filme que acredita na infinitude das coisas e que nada no mundo acaba. É uma visão bonita para quem conheceu tão de perto e foi inspirado pelas diversas religiões de matriz africana e indígena, as retratando em suas dezenas ou centenas de letras a elas dedicadas, combinando o sagrado e o profano, o onírico ao místico. Ele conclui aí, no entanto, que, pessoalmente, não professa nenhum credo.


Na infinitude da criação de Paulo César Pinheiro, que atravessou diferentes gerações da música popular brasileira desde Pixinguinha, a quem conheceu e compôs letra para “Ingênuo”, o filme que o retrata segue blocos temporais quase sempre cronológicos, começando com o nascimento e o início da carreira e se completando na atual vida familiar e profissional. Depois da morte de Clara Nunes, Paulo César Pinheiro se casa com a também musicista Luciana Rabello, com quem segue casado até os dias de hoje. Filmes da vida íntima do casal entram na montagem mostrando os filhos pequenos. Hoje, os filhos já adultos seguem a vocação artística do pai e da mãe. É nessa comunhão que o filme se encerra, com uma roda formada por Pinheiro, Luciana e seus filhos Ana e Julião, em que ele mesmo dá voz ao samba “Nomes de favela”, mais um retrato do Rio de Janeiro feito pelo poeta. “O infinito dobra e volta”, como diz o próprio.





Notas

[1] “Elisete Cardoso, uma vida”, da Editora Lazuli.

[2] Leva essa resultante da separação entre Baden Powell e sua então parceira Tereza, que o abandonou porque Baden, como conta Dominique Dreyfus em “O violão vadio de Baden Powell”, tinha sérios problemas com álcool. A autora narra também inúmeras passagens da amizade entre o violonista e Paulo César Pinheiro.

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