por Italo Diblasi
Passaporte de Walter Benjamin
Há mais de 2500 anos, Eurípides, o dramaturgo grego, fissurou o pensamento helênico com a tragédia "As Bacantes", que tem sua força motriz na figura singular do estrangeiro. Em linhas gerais, a coisa toda se desenrola com a chegada de Dioniso, o deus epidêmico, em Tebas. Dioniso entra em farrapos na cidade, sob o disfarce humano de mendigo. Um estrangeiro mendicante: eis a faceta dionisíaca que colocará a civilização de joelhos. Tudo porque o deus queria, com isso, testar a receptividade de um povo, seu ethos. É evidente que toda a cidade o recebe mal, sem saber que se tratava de um deus, um dos seus, ainda que sempre estrangeiro (a condição de Dioniso: está em toda parte e em lugar algum, vem sempre de um ponto mais distante, desconhecido) sobretudo o rei, que chega a negar recebê-lo na corte. No decorrer da peça, o mendigo, isto é, Dioniso, é negado pela cidade, que o considera repugnante, inconveniente, sem lugar. Eurípides parece querer, com isso, pensar a categoria do pária, que conhecemos muito bem no século em que nos encontramos, o século que mal começa e já se revela inclinado aos párias e aos monolitos.
O ápice do processo se dá quando o estrangeiro, isto é, o deus, vai preso. A alteridade é neutralizada, a cidade se crê limpa, salva. Rapidamente notamos que o povo de Tebas falha na provação de Dioniso, ao esmagar existencialmente o outro, seu deus travestido, que engendrará a vingança, espalhando a manía pela cidade, uma espécie de surto dionisíaco ou transe coletivo que abala por completo as normas vigentes daquela sociedade. É o castigo do deus, isto é, do estrangeiro – que encontra sua apoteose na cena em que as mulheres da cidade, em transe, matam o rei. Desde então, todo povo que conhece Dioniso se vê impelido a receber bem os estrangeiros, porque assim ensinou o deus-que-deriva-pelo-mundo. Dois milênios depois, o Ocidente não parece ter compreendido a força desta ideia.
Toda identidade é um pouco encardida. Aqui vai uma pequena anedota: no final dos anos 1960, Sylvia Molloy é interpelada por um funcionário da imigração em um aeroporto norte-americano e tem sua bagagem revistada. O episódio é narrado em seu "Citas de Lectura", e se remete ao momento em que, depois de já ter vivido na França, a escritora argentina se muda para os EUA. O funcionário, durante a revista da bagagem, se depara com um exemplar de "Tristes Trópicos", que continha um jovem índio tupi na capa, e conclui que se trata de um livro cubano. "This is a cuban book!", exclamou, segundo Molloy, que acrescenta ter sentido, naquele momento, que ser outro, mesmo que através de um livro, era algo perigoso. Não chega a ser surpreendente o fato de que o exemplar estava impresso em francês. Poucos anos depois, Sylvia Molloy se tornaria a primeira mulher a ocupar o posto de professora titular em Princeton.
Em outubro de 1999, na ocasião do prêmio Rómulo Gallegos, Roberto Bolaño proferiu aquele que ficou conhecido como “O Discurso de Caracas”. Nele, o escritor chileno (o menos chileno dos escritores chilenos – e talvez por isso mesmo o melhor deles) confunde deliberadamente Caracas com Bogotá, Colômbia com Venezuela, os poetas de um e outro país. Recusa as divisas e suas quimeras. Havia andado trinta anos pelo mundo carregando na bagagem uma ideia. Morreria com ela, poucos anos depois. Chega, no discurso, a falar de um tal “método poético”, insistindo que “a verdade das verdades é que Caracas é a capital da Venezuela, da mesma maneira que Bolívar, que é venezuelano, morreu na Colômbia, que também é Venezuela e México e Chile. Não sei se entendem aonde quero chegar”. Quero crer que entendemos, ainda que não saibamos – é certo – o que fazer com isso. Não é inapropriado lembrar que, há menos de dois anos, milhares de venezuelanos foram hostilizados ao cruzar a fronteira com o Brasil, chegando mesmo a ter acampamentos queimados em Roraima. A maioria deles fugia da fome. Enquanto isso, os venezuelanos residentes em Miami comemoravam aquilo que chamavam de “o sufocamento do regime”. “América, quando você merecerá o seu milhão de trotskistas?”, perguntava Ginsberg em meados do século passado. E há, ainda, os que não cessam de perguntar.
Fazer literatura implica necessariamente um gesto ético. Não é à toa que o exílio e a deriva tenham sido desde sempre temas fundamentais dela. Sobretudo na América Latina, o continente que foi fundado ao mesmo tempo em que era dilacerado. Talvez por isso tenhamos sempre delirado, inclusive com a ideia da “pátria grande” (sem dono, ao passo que de todos), e já duram para lá de quinhentos os nossos cem anos de solidão. Ainda assim, não custa lembrar que, em Macondo, a cidade fictícia (que é ao mesmo tempo todas as nossas cidades) eram, é claro, os ciganos – da tribo de Melquíades – que traziam as grandes invenções da humanidade e as notícias do mundo, e ali encontravam descanso – também eles fugitivos de qualquer outro lugar.
E por falar em fugitivos, é ainda Bolaño, em seu “Literatura y Exilio” quem retoma um grande poema de Nicanor Parra, poema cuja grandeza reside, dentre outras coisas, no fato de que perverte a tediosa discussão em torno da ideia do “poeta nacional”, obsessão que também conhecemos bem. Parra, em sua espirituosidade, escreve: “Os quatro grandes poetas do Chile/São três:/Alonso de Ercilla e Ruben Darío”. O primeiro, um soldado espanhol; o segundo, um nicaraguense. Ambos estrangeiros, que escreveram no Chile (ou sobre ele), na língua que é comum a todos os países envolvidos na confusão a que o poema nos lança. É que, de um modo ou de outro, o pertencimento está ligado à experiência, e a escrita talvez seja a mais radical delas.
Neste mesmo sentido – o da radicalidade – não deixa de nos chocar a misteriosa morte de Walter Benjamin, o pensador judeu alemão que, em fuga do nazismo, perambulou pela Europa com suas teses debaixo do braço, e que em tentativa de fuga pelos Pirineus, foi parado na fronteira (sempre ela!), pela polícia espanhola, junto a um grupo de refugiados. Temendo uma deportação e cansado de fugir, suicidou-se. Levou com ele as ideias para as quais a Europa não estava pronta. O grupo que acompanhava, como sabemos, foi liberado na manhã seguinte. O desterro é a mais humana das condições, a nossa sombra, e a poesia não nos deixa esquecê-lo. É um de seus deveres. Não parecerá estranho que tenham sido tantos os poetas perseguidos, dentro ou fora do que aprendemos a chamar de terra natal, em tantas épocas diferentes de nossa conturbada história. Anna Akhmatova; Garcia-Lorca; Carlos Marighella; Pasolini; Marina Tsvetaeva; Ernesto Cardenal; Victor Jara, para citar apenas alguns de uma extensa lista de poetas do desterro, essa constelação de santos degradados que insistiu em levar à frente a tarefa da escrita, que é a tarefa do sonho, e que continuam levando até hoje, graças a deus.
É também por isso que sempre será necessário reafirmar a inseparabilidade entre vida e escrita, pois esta é uma prática de existência, assim como a primeira é a constituição de uma obra. A produção de um movimento de vida seria, quem sabe, o dispositivo ético que viria vindicar o peso dessa deriva toda, afirmando uma diferença. Em última instância, seria poeta todo ser humano que deliberadamente praticasse um modo de estar no mundo que afirmasse esta diferença como valor constitutivo. Tarefa hercúlea na qual estamos sempre falhando, mas na qual é preciso insistir. Todo poema é o testemunho de uma falha e de uma tentativa.
Deriva, desterro, poesia e literatura. Uma correlação dura de ideias para uma luta igualmente dura: a proposição de uma outra subjetividade, outro corpo social. Nesse sentido segue sendo oportuno recobrar o texto zapatista do início dos anos 2000 que definia o Subcomandante Marcos como um corpo coletivo, corpo que se deixa entrever como “gay em São Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa, chicano em San Ysidro, anarquista na Espanha, palestino em Israel, índio maia nas ruas de San Cristobal , judeu na Alemanha, cigano na Polônia, um curdo na Turquia, um moicano no Quebec, um pacifista na Bósnia, uma mulher solteira no metrô às 22h, um camponês sem terra, um membro de gangue nas favelas, um desempregado trabalhador, um estudante infeliz e, é claro, um zapatista nas montanhas”.
Quando falamos da poesia como um “segredinho sujo” é que vemos nela uma força que abre um campo para o pensamento trabalhar, força que implica um risco enorme e necessário. Um certo tipo de estrangeirismo. A abertura que Dioniso exigiu da cidade, tarefa diante da qual Tebas falhou, mas Macondo não. Ela também é dever da poesia. O nome desta força é Coragem. E que ninguém se confunda: vêm dela os grandes poemas, inclusive (e sobretudo) aqueles que não são escritos, aqueles que encontramos nos grandes e nos pequenos gestos, coisas que com frequência carecem de explicação e que nos constituem como humanos, essa abstração assombrosa que nos leva além, permitindo enganar a morte em favor da vida. “Assim eu quereria o meu último poema”. Já não seria pouco.
* este texto vai dedicado ao gato da julia, um gato da estirpe estrangeira, que nunca teve nome, um gato que há 10 anos abandonou as ruas e apareceu em sua casa, onde foi recebido e viveu até hoje, quando morreu.
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