por Pérola Mathias
Nova disposição das cadeiras em um teatro de São Paulo em 2020. Fonte: Folha de S.Paulo
Em geral essa coluna se ocupará de temas relacionados à música, seja analisando um disco, uma trajetória, algum vídeo ou resenhando um show, quem sabe, num futuro próximo. No entanto, gostaria de inaugurar esse espaço deixando uma brevíssima reflexão a respeito da situação dos produtores e criadores de arte e cultura no país. Não, o país não está quebrado. Quem governa é que não sabe o que fazer (e não quer fazer nada, o que é pior). Mas os nossos artistas e produtores, esses sim, estão quebrados, financeira e mentalmente. E devemos nos preocupar.
Devemos nos preocupar também porque, olhando para o contexto amplo, o Brasil é o quinto país mais desigual do mundo, segundo o último relatório anual da ONU, ficando atrás apenas de Qatar, Malawi, Moçambique e República Centro Africana. Se juntarmos tal informação com os acontecimentos recentes de ataque à cultura – como a extinção do Ministério da Cultura e a ridicularização de suas atribuições creditadas em uma secretária assumida, num curto intervalo de tempo, por um diretor de teatro nazista e dois atores globais que disputam o troféu de quem é mais estúpido –, temos, como conclusão óbvia, que defender a Cultura é admitir que vivemos, enquanto sociedade, uma jornada desenfreada rumo à barbárie.
Para termos uma ideia de como o setor cultural é um campo importante não apenas na dimensão simbólica e existencial da construção de nossa identidade e solidariedade enquanto país e nação, até 2017 os setores culturais e criativos eram responsáveis por pouco mais de 2% da geração de riqueza de nosso PIB e empregavam, em postos formais de trabalho, mais de 800 mil pessoas. Antes da pandemia do coronavírus trazer um enorme baque ao setor, a projeção era de que ele gerasse mais de 40 bilhões de dólares para nossa economia até o ano presente, 2021. Dito isso, gostaria de apresentar alguns dados sobre como a crise sanitária atual impactou diretamente nessa produção de riqueza e, sobretudo, afetou a vida de milhares de produtores culturais e criadores de forma profunda.
Uma pesquisa recente envolvendo pesquisadores da USP, SESC e UNESCO ouviu mais de 2.600 entidades (69,4% de indivíduos e 30,6% de coletivos) espalhados por todos os estados do Brasil, mais o Distrito Federal, para saber como esses trabalhadores foram afetados. Os estados com maior participação nas respostas foram Bahia, Amazonas e São Paulo e os setores artísticos com maior participação foram arte cênicas (27,62% das respostas), música (18,09%) e artes visuais e artesanato (13,84%). De todos os respondentes, 27,19% ganha entre 3 e 7 mil reais e 24,62% ganha entre 1 e 3 mil reais, tendo como principais fontes de renda a prestação de serviço (55,89%) e editais (15,31%). Juro que esses números todos já estão acabando, pois não vou apresentar aqui toda a pesquisa. Gostaria apenas de destacar a seguir os que me pareceram mais chocantes: o quanto a renda dessas pessoas foi afetada.
Nos dois primeiros meses de pandemia no Brasil, ou seja, março e abril, 41% dos trabalhadores da cultura que responderam à pesquisa perderam toda sua renda. E nos meses seguintes, de maio a julho, essa proporção aumentou para 48,88% – ou seja, praticamente metade. Em torno de 20% perdeu metade de suas receitas e 10% não teve alteração até julho.
Não sei quanto a vocês, mas saber que metade dos colegas que produzem e criam perderam a totalidade de sua renda me deixa completamente atordoada porque, além da maioria dos meus amigos e dos artistas que admiro estarem nesse barco, no qual também me incluo, a pandemia tirou o chão da cultura, que já vinha sendo tão massacrada. De alguma forma, uma esperança de futuro nos foi roubada. Nos foi tirada a perspectiva de os artistas continuarem produzindo e criando de forma mais ou menos digna e não como uma atividade secundária. Milhares de pessoas perderam seus trabalhos e tiveram que inventar qualquer outra atividade para a qual elas, talvez, vejam menos sentido em realizar. Foi minada a perspectiva de artistas novos se lançarem, por enquanto.
Por outro lado, o que mais vimos em textos, reportagens e posts em redes sociais nesses áridos últimos meses em que estivemos privados do convívio social e com medo de encarar as ruas, foram declarações sobre o quanto a arte é necessária na vida das pessoas. Ficou claro como encontramos nas manifestações artísticas as mais diversas chaves de significados que nos ajudam a compreender o mundo, a lidar com o cotidiano, a nos conectar com pessoas próximas a nós e ter (para usar a palavra da moda) empatia: pelo diferente, pelo que não conhecemos, pelo outro que não acessamos. E tudo isso demonstra que as manifestações artísticas e o conjunto de significados criados na esfera cultural ultrapassam o utilitarismo, transplantam questões técnicas, minam o valor de uso. Afinal, quem não curtiu uma live de Teresa Cristina, bom sujeito não é. E o que há ali de tão maravilhoso para ter encantado público e crítica, que a elegeram a “rainha das lives”? Pulsa o encontro e a troca de saberes: faz-se virtualmente a roda de samba e de conversa, ligam-se intelectuais e sambistas, nascem parcerias, flertes e gozo.
Mas, além da crise que vivemos enquanto sociedade, passamos também pela mais grave crise sanitária da história recente. E, se não podemos nos encontrar, como podemos ressignificar as dinâmicas de associação e “reagregar o social” (para usar a expressão de Bruno Latour)? Como essa é uma questão estrutural mais profunda do que respostas simplistas poderiam dar conta, a pergunta fica como um exercício retórico. No entanto, voltando para o problema dos trabalhadores da cultura, que é imediato e próximo a nós, o que podemos fazer? Como nos salvaremos, ao menos, da crise econômica?
Bem, muitos falaram como é importante que o público apoie os espaços culturais, compre ingressos adiantados, compre os discos físicos ou produtos lançados pelo artista, que driblemos os esquemas do streaming que pagam uma miséria pelo direito autoral e etc. Mas duas questões me vêm à cabeça quando vejo esses apelos – mais do que justos, por sinal. A primeira é que, se está difícil para o artista, para o público imagino que nem sempre esteja melhor, afinal o desemprego bateu recordes nesse período e a inflação é para todos. Não é uma escolha factível escolher entre um vinil e o botijão de gás.
A segunda questão é que a resposta ao que podemos fazer também veio implícita em outros dos dados da pesquisa citada: a maioria das pessoas que responderam aos questionários e se identificaram como indivíduos, pessoa física, são trabalhadores autônomos e informais (55,12%), sendo que mais de 30% possui superior completo, mais de 20% tem especialização na área e mais de 17% mestrado ou doutorado. Ou seja, não há solidariedade e ajuda pessoal que possa sanar um problema político. Enquanto nos ocupamos de criar uma rede necessária e bonita de ajuda e engajamento de capitais financeiro e social para manter os artistas e produtores ocupados e tentar criar uma mensagem educativa de “fica em casa” ao público, parece estar nos faltado também imaginação política para reivindicar o que de fato pode ajudar o setor: políticas públicas.
Quando Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura em 2002, tínhamos ali algumas razões para acreditar que uma mudança estava por vir – e veio –, e não imaginamos que viríamos a viver a negação daquele pacto. Hoje podemos entender, inclusive, o quanto aquele momento foi decisivo para que o setor cultural se estruturasse e se amplificasse para o formato como o entendemos hoje. Afinal, uma pesquisa em território nacional, que demonstra o quanto a produção não está mais hegemonicamente atrelada ao eixo Rio-São Paulo (saudemos a Lei Cultura Viva, por favor!), que as mulheres são a maior parte da engrenagem e que o campo é formado por indivíduos com alto grau de escolaridade, revela também que foram políticas de governo tornadas políticas de estado que permitiram tal especialização e capilarização. É por isso que é possível que a Lei Aldir Blanc exista hoje, também. Mas ela será suficiente? E os editais (inclusive os já aprovados e que não foram pagos)?
A cultura brasileira sempre foi, ao menos ao longo do século XX, o espaço no qual o país se realizou enquanto nação, inventando uma linguagem e uma identidade próprias. O mundo conheceu o samba dos Oito Batutas; Tarsila faz parte do rol de obras milionárias do mercado de lavagem, ops, arte; a bossa, a MPB, a Tropicália e a nova música brasileira já ocuparam não apenas palcos nos 4 cantos do mundo, mas são uma gramática reconhecível em todo o globo terrestre.
Então, voltando à questão central desse texto: o que podemos fazer a respeito de um cenário tão crítico quanto o que se apresenta? É difícil ter uma resposta pronta, mas, sem dúvida, é da sociedade civil organizada que poderá vir qualquer tipo de demanda, não de uma instituição ou de uma figura na qual centraremos nossas aspirações. Não basta mais apenas escolher um lado no campo de batalha, é preciso coordenar os passos. Precisamos organizar e pôr em prática o bloco dessa mocidade, porque corremos o risco real de não ter um amanhã para desejar quando chegar 2022.
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