por Pérola Mathias
Foto: Ariel Martini
Quanto você pagaria para ver um show de seu artista favorito? Você levaria em consideração o lugar, tamanho do show, período da carreira, dentre outras variáveis na hora de tomar a decisão ou apenas iria de qualquer jeito? E se o valor do ingresso estiver fora da sua realidade econômica? Ou fora da realidade econômica em geral?
Mais uma vez, é impossível falar de música sem esbarrar no contexto político atual. Vemos nosso dinheiro encolher dia após dia e não é exagero retórico. A inflação vem a galope e os gastos básicos de comida, aluguel, luz e transporte não têm deixado margem para muito mais coisas. E o lazer? E a cultura? Quem ainda consome ou pode consumir arte?
É sempre difícil atribuir o valor de um bem artístico. É preciso levar em consideração o tempo e esforço do músico em criar sua obra e personalidade, os meios materiais que mobiliza e compreender que arte é trabalho. No caso da música popular, quando o produto final chega ao ouvinte consumidor, não se trata apenas de apreciar a criação. A música e seu contexto, bastante atrelado ao formato do ao vivo, seja por show, djing, live act etc., delineia, para além da fruição estética, identidade e estilo de vida, articulando a criação e consolidação de uma comunidade ativa. Uma “cena” musical, como aponta Paula Guerra[1], inclui significantes tanto sonoros quanto imagéticos, lifestyle, performance, expressão e interações diversas com o contexto urbano.
Pensando nesse conjunto de significados da pertença individual a um grupo é que festivais de música, de grande e médio porte, tanto nacionais como internacionais, são sempre super disputados. É raro ver um festival “flopar”. Depois de passarmos por uma pandemia que suspendeu atividades culturais por quase dois anos, deixando toda uma cadeia de trabalhadores ligados à cultura sem trabalho e um público sedento por socialização e novas experiências, os festivais chegaram com tudo em 2022. Mas, de cara, o preço dos ingressos chama atenção por não condizer mais com a realidade do jovem adulto de classe média.
O último anunciado, por exemplo, a edição brasileira do Primavera Sound, com pelo menos trinta artistas por dia, custa de $600 (a meia entrada) a $2600 (área vip). Na média, quem não é meia paga entre $700 e $800 reais, o que equivale hoje a uma cesta básica em São Paulo (orçada em $803,99 pelo Dieese no começo do mês de maio). Os festivais, eventos de iniciativas privadas, são ocupados pelas ações de marcas que buscam associar seu produto ao estilo cool, livre e divertido do evento, convidando diferentes tipos de “influencers” para comparecer e gerar “conteúdo”. Ou seja, eles não apenas não pagam ingresso, como ganham pra isso. E, sejamos francos, esses conteúdos pouco ou nada tem a ver com o gosto pela música. Se você é o fã máximo da Bjork e paga quase $2000 para vê-la da área VIP, apenas concentra na música ou olha pro lado e pensa “putz, será que eu sou otário?”?
Obviamente que festivais focados nas atrações nacionais conseguem vender seus ingressos a um valor bem mais baixo, ainda que também estejam atrelados a um certo padrão de vida, e têm se multiplicado, porque é preciso fortalecer o cenário nacional nesses tempos de crise. Crise, inclusive, que encarece os festivais internacionais, não há o que fazer. Antes que digam, mas então você não acha que vale pagar $800 para ver 30 artistas se apresentarem, empregando uma série de pessoas que fazem com que o show aconteça? Acho sim, acho super, acontece que, falando por mim, eu, Pérola, não posso. Se um dia já tive a chance, hoje não é mais viável. E o que eu proponho?
Olha, sinceramente, não proponho nada além de pensar na questão e votar 13 em outubro. No Brasil, em comparação com outros países, sempre pagamos mais pelos produtos que consumimos, do hambúrguer ao ingresso de show, do cinema ao vinho. Mas houve um tempo em que recebíamos da isenção fiscal de empresas milionárias pelo menos uma contrapartida mais ou menos satisfatória. Trocávamos notas fiscais por ingresso, domingos abertos em teatros e cinemas, ingressos acessíveis para assistir aos medalhões da nossa música (jamais esquecerei que vi João Gilberto por $50 no Teatro Castro Alves – tudo bem, era na fileira Z, mas eu ouvi e vi; e Gal Costa em palco flutuante dentro das águas da praia do Porto da Barra, mas também no largo do Pelourinho, em frente à Casa de Jorge Amado). Hoje, a nossa opção barata e com ambiente digno é o SESC, que também na não anda encaixando muito no orçamento. Além, é claro, de ser limitado no Brasil, tendo programação intensa e constante principalmente em São Paulo.
Como, então, que podemos fruir a música em seus âmbitos estéticos, culturais, seu papel na dinâmica social da nossa vida, se o país desmorona sobre nossas cabeças (antes fosse só sobre nossos bolsos, “só”)? Até falar no papel do Estado hoje na sustentação da cultura parece tiro no pé, não só para conferir dignidade aos cidadãos e criadores, mas como atividade que se reverte em lucro, já que há uma guerra ideológica burra em curso. Se sai uma CPI do uso de verbas municipais para contratar sertanejos, vão rever a Lei Rouanet para fazer a coisa funcionar direito ou vão implodir ainda mais as condições materiais para os fazedores de cultura? Um próximo governo não fascista (nem ouso mais usar a palavra progressista) criaria uma espécie de bolsa cultura, pros estudantes, que fosse, mais efetiva do que a meia entrada? E será que daria certo?
São muitas as perguntas que devemos nos fazer, porque no atual andar da carruagem não existe “ah, precisamos cobrar das autoridades”. Qual o nosso ideal de mercado cultural? Como pensar essa cultura hegemônica que mais exclui do que inclui? O que queremos dos tais “comitês de cultura” que Lula promete, caso vença?
[1]http://www.sociologiaeantropologia.com.br/wp-content/uploads/2018/06/2_v08n02_PaulaGuerra.pdf
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