O linchamento de Mary Turner
Sábado, 18 de maio de 1918,
Valdosta, Geórgia,
Estados Unidos da América.
A jovem afro-americana
Mary Turner, 19 anos,
grávida de oito meses,
recém-viúva,
denuncia o brutal assassinato
de seu marido
por milícias supremacistas brancas.
Domingo, 19 de maio de 1918,
Mary Turner é violentamente sequestrada
de dentro de sua casa
por mais de uma centena de pessoas brancas.
Com mãos e pés amarrados,
é pendurada de cabeça para baixo
numa árvore com troncos robustos.
É embebida em gasolina e óleo diesel.
Ateiam fogo ao seu corpo.
Mary Turner, viva e em chamas,
estertora de dor e desespero.
Do meio da multidão,
um homem branco
avança com um facão
e abre o ventre de Mary Turner.
Caído da barriga aberta,
o recém-nascido berra.
Vísceras se misturam à terra.
Um outro homem branco
salta do meio da turba
ergue sua bota
e violentamente esmaga
a cabeça do bebê.
Alguns segundos
de silêncio de morte
e os brancos sacam suas armas,
miram os corpos
da mãe e do filho,
e abrem fogo.
O sol apodrece em silêncio
sobre as magnólias sulistas.
Sangue nas folhas e raízes.
A multidão, satisfeita, ri.
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Reza brava
Para Rakim
na miserável terra de ninguém
thinkin’ of a master plan
sorvo o ouro do algum alívio
de estar livre, atento, forte e vivo
tateio o travo, o trevo, a treva [o trívio]
bebo a manhã que se abre como hibisco
e, decerto, ouço aquele que mediu o deserto
aquele que extraiu ao coração da rua
a fera palavra potável que flutua
palavras polidas com plaina
rimas afiadas no torno mecânico
vidente vulcânico, rei dos poetas
exu driblador, inventor epifânico
preza peso, destreza, potência
perícia, peripécia, dignidade
na névoa-nada, o que vale
Aquele-Que-Sabe
Rakim [carne de pescoço]
encarna a crua arte de rua
olha olho no olho no rosto do osso
faz, sagaz, a assaz rima veloz
a fera fúria que flutua e apraz
foz onde pássaros de jazz
plantam as plantas dos pés
cantam e cedem à sede
no crivo do impossível
no vivo do inviável
a rima requer um rim
e Rakim é o fim
estopim do Queens
[nada de meia-palavra
nem papo-capim, papo-alfafa
bala de festim ou coisa assim]
febre do raro, poeta-sabre
veneno de cobra-coral
Nada é melhor, já dizia Kurtis Blow
Rakim,
pleno domínio material
flow sanguíneo, concreto
atina, espadachim insurgente
a morte não terá domínio
jaz doente – ao cindir sempre
just when things seemed the same
and the whole scene is lame
ruge o rei à cena sem lei
proletário paradigmático
na ripa, aplica o inexplicável
estouro estirpe estalo estilo
doma a mágica carbonária
direto do irreal real lodoso
pelas brechas de sol do barraco
contra a corrente reacionária
da extrema-direita canalha
[Pai, afasta da gente esta taça
de vinho tinto de horror e desgraça]
no mar vermelho de sangue
que corre pelas ruas, becos, vielas
perifas, palafitas, mangues, favelas
régua das tragédias sem trégua
da ilusória turmalina do aqui
a fé entoa rajada de metralhadora
sobre o abismado abismo
[sem mimo ou mímico,
estamos à própria sorte]
medo, morte, abalo sísmico
a vida-inteira-trincheira
por isso a labuta bruta,
a muda de luta diária
no colorido jardim da cuca
pétala da flor do novo
todo poder ao povo!
aérea ária ao raiar do sol
seu poema-arsenal,
rajada de hk, antimonturo,
protege da morte o futuro
cria ontem a rima de sol
que soou em flow hoje
sina de ouro de mina
posse de palavras minadas
límpida água vocabular
farinha de macaxeira
oxigênio direto no pulmão
ar ar ar ar ar ar ar
alimento substancioso
fruta gogoia que refresca bem
thinkin’ of a master plan
o corre, a treta, a guerra de troia
treco e atrito, balanço de trem
movimentos movimentam
Rakim, il miglior fabbro
coração exilado de ostra
arrima saúde e espetáculo
fogo de pira, rara joia
cânfora na aurora
pérola na boca da memória
o brabo bardo que criva
de furiosa rima viva
[recém-saída da saliva]
a realidade besta-fera
do bestial sistema antivida
dessa eterna miséria
assim, God mc
contramorte rima e respira
contramorte brisa a brisa luta
sua poesia, um Oriente
ao oriente do Oriente,
arma antiasfixia, guia
ginga gíria ganja alegria
craque da era do boom bap
poeta do xeque-mate
alta precisão motz el son
inventor que colore o sol
cria um som e outro sol
outro som em outro tom
com a ten são de outro sol
outro sol mais outro som
e outro som e mais um sol
aspira expira conspira
incêndio de mil sóis
acende a rima e a pira
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Abre o amanhã, camarada
Abre a manhã, camarada, com tuas mãos,
tuas próprias mãos, calejadas e sanguíneas.
Abre a manhã como a uma fruta madura
cuja doce polpa repartida alimentará a todos.
Na labuta, prepara a luta, acende o sol
que derrama luz sobre o dia material,
de café, manteiga e pão, de suor e susto,
de trabalho proletário nas fábricas do mundo.
Abre a manhã, camarada, como à janela
da casa, como ao coração antigo do bairro
– este bairro que canta o fim do Estado burguês
em cada uma de suas casas, ruas e vielas.
Como a palavra impossível (de proteína pura)
cuja substância determina sua consciência
– palavra de fogo e força que fala pela nossa classe,
palavra certeira, tiro na cabeça do zumbi.
Abre a manhã, camarada, futuro do presente,
que ilumina o muro onde garotos pixaram:
Trabalhar todos, trabalhar menos,
produzir o necessário, redistribuir tudo.
Abre o amanhã, camarada, na batalha renovada,
deixa o chorão chorar, traz azeite na peneira.
Defende o inevitável amanhã contra o horror,
como o jovem chinês que, ao lado do seu fuzil,
lê Lênin sob a sombra de uma cerejeira em flor.
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Três quadras líricas
Palavra de operário, feita na forja,
antiprolixa, não faz curva, não afrouxa.
No turno a turno no torno, do aço
fabrica o inconsútil voo do pássaro.
Palavra de bom cultivo, civil e cítrica,
semeia a noite frugal na noite física.
No coração do assentamento é cozida
a palavra-alimento que nos cultiva a vida.
Palavra guerreira de Ogum, abalo sísmico,
que guarda e resgata os filhos do abismo.
Palavra pujante de poesia, flor no monturo,
lirismo futuro que a quem nada tem dá tudo.
Fotografia: Natália Agra
FABIANO CALIXTO nasceu em Garanhuns (PE), em 1973. É poeta, editor e professor. Vive na cidade de São Paulo com sua companheira, a poeta Natália Agra, com quem dirige a editora Corsário-Satã. Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (usp). Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/ 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China, 2014), Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014) e Fliperama (Corsário-Satã, 2020). Seu novo livro, um auto de natal, será lançado no fim de 2022.
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