por Pollyana Quintella
Rembrandt van Rijn, Autorretrato (1642)
Poucas coisas são tão simultaneamente amadas e odiadas quanto a selfie. Embora o fenômeno, tal como o conhecemos, seja relativamente recente, já nos soa como fator incontornável da vida contemporânea. A primeira “front-facing camera” surgiu em 2010, com o Iphone 4, e apenas três anos depois, em 2013, o Oxford English Dictionary já havia elegido a “selfie” como a palavra do ano. Desde então, ela chegou pra ficar.
As selfies estão em todo lugar e nas mais distintas situações. Modificaram a vida dos turistas, o fluxo dos museus, os registros afetivos entre amigos e o modo de flertar (ou biscoitar) na internet. Podem ser sexies ou engraçadas, íntimas ou oficiais, públicas ou domésticas, espontâneas ou premeditadas. A selfie tornou-se tão imperativa que não é raro sentir a sensação de que, no Instagram, o mundo está sendo experimentado na busca pelo melhor autorretrato. Como é possível imaginar, não demorou também para que o fenômeno começasse a ser ridicularizado. De repente, a internet fazia graça de notícias que vinculavam selfies à acidentes. Alguém derrubou uma obra de arte, outro alguém caiu de um barco, alguém tropeçou, houve ainda aqueles que, mais tragicamente, caíram de penhascos e montanhas. Eram manchetes que faziam sucesso nas redes, ao ponto de, em 2015, o site Mashable divulgar que o número de mortes causadas por selfies naquele ano superava o de causadas por ataques de tubarões. A busca pela imagem perfeita, que fazia de seu contexto um mero cenário, começou a parecer perigosa. Morreu de que? Morreu de selfie.
Como tudo na vida, as selfies não escaparam de atribuições morais e reguladoras. Elas nos soam excessivas, autocentradas, narcisistas, egoístas, exibicionistas etc. E muitas vezes, tal julgamento vem acompanhado de abordagens elitistas e sexistas. Muita selfie é coisa de mulher. Muita selfie é coisa de gente que não tem conteúdo a agregar e não tem mais o que fazer. Pessoas que postam selfies demais tendem a nos ofender e constranger. Uma selfie de vez em quando, tudo bem, mas um monte assim? Já é demais. Podemos dizer que há uma espécie de cartilha velada para o que seja um bom comportamento na internet, e ela compreende uma certa política da selfie.
Mas o que quero chamar atenção é que a selfie revela um procedimento bastante comum entre nós: a produção de identidade; a necessidade de se sentir amado, notado e reconhecido. Basicamente, a selfie é uma modalidade que exercita respostas para algumas perguntas: Que aparência eu quero fixar para os outros? Que imagem eu produzo quando penso no modo como os outros me veem? Sou querida e desejável? Como diz Sharrona Pearl, the self is always a selfie.
Tal complexidade, porém, está antes de tudo no modo como o software foi concebido. A câmera frontal funciona como se pudéssemos nos ver a partir de um ponto de vista externo, segundo o olhar do outro. É um olhar interno exteriorizado. Ou um olhar externo interiorizado. Embora banais e cotidianas, elas traduzem caricaturalmente a forma como produzimos identidade na negociação entre eu-outro, nós-eles. Além disso, são a reafirmação de que o rosto é nosso mais importante texto, o primeiro modo como nos apresentamos aos demais.
Mas a construção de identidade no Instagram é perversa, pois exige uma unidade do “eu” que não condiz com a vida real. É evidente que o modo como performamos diante de nossos pais ou amigos não é necessariamente a forma como lidamos com alunos, clientes, chefes ou semiconhecidos. Nas redes sociais, porém, tudo precisa conviver no mesmo lugar: minhas leituras intelectuais dividem espaço com meus interesses por batons e acessórios, ou com meus momentos de dancinha e descontração. Meus momentos sérios e produtivos dividem espaço com meus momentos fúteis permeados de senso comum. Diante das expectativas segmentadas dos outros, esse “eu múltiplo” está fadado a decepcionar. E está também aí a fonte de angústia e ansiedade para muita gente: o panóptico digital é cruel e jamais cumpriremos seu ideal. Creio que, também por isso, nos cabe duvidar e questionar esse gosto por julgar a vida virtual do outro, esse anseio por fiscalizar, devidamente protegidos pelo ecrã, a performance alheia.
Um clássico exemplo disso é a forma como lidamos com nossas selfies antigas. A obsessão pelo autorretrato é especialmente comum entre adolescentes e não à toa. É através delas que eles buscam conhecerem a si próprios experimentando poses, acessórios e modos de enfrentar a câmera. Para a minha geração, que foi adolescente no início dos anos 2000 (e, portanto, pré-selfie), essa construção de identidade através da fotografia (no nosso caso, via cyber shot) sobreviveu na internet durante anos, nos arquivos do Flogão e do Fotolog. Acontece que a experiência de rever essas fotos antigas, espécies de selfie-antes-da-selfie, nem sempre é prazerosa. Com alguma distância histórica, elas às vezes nos soam ridículas, patéticas, prepotentes. O preço de documentar a experimentação da identidade em tempo real nas redes sociais é que esses arquivos sobrevivem mesmo depois que nós mesmos já mudamos. O que poderia ser positivo (afinal, estamos em movimento o tempo todo), está longe de ser um ponto pacífico. Resgatar fotos antigas para ridicularizar alguém nas redes é comum nas práticas de trollagem e bullying virtual. A internet, como sabemos, é impiedosa.
Com o boom de filtros do Instagram, a coisa ganhou ainda outros contornos. A busca da selfie perfeita se traduz na aplicação de filtros sutis que nos fazem parecer mais saudáveis. Entre as blogueiras, por exemplo, é comum os de efeito praia e os de "natural beauty". São filtros que buscam simular um padrão de beleza em geral europeu — nos embranquecem, afinam nosso nariz, escondem olheiras etc. e, com isso, expõem coerções, protocolos e pactos estéticos violentos. É também através da selfie que percebemos como se impõe um sistema de regras e condutas, regulamentos e controles. Mas há ainda os filtros mais divertidos, aqueles que nos liberam da culpa de fazer autorretratos. São os filtros-joguinhos, filtros-quiz, filtros engraçados, filtros com causas políticas, todos eles fazem a selfie parecer menos vazia e com mais propósito.
Tendo a achar que, quando nos constrangemos com o excesso de selfie alheia, é porque vemos ali um certo espelho de nós mesmos. O narcisismo nas redes não é exclusividade da selfie, e está presente, embora mais camuflado, em conteúdos aparentemente desprovidos de biscoitagem. O que nos ofende na selfie é que ela expõe de forma mais crua como parte de nossa atividade está organizada na internet, ainda que sob outras formas e outras escalas. A própria luta política online está mergulhada em ativismo narcísico. A lacração, o thug life, entre outras performances, tendem a situar a figura do ativista acima de suas causas políticas e, muitas vezes, a construção de sua autoimagem está diretamente vinculada à degradação da imagem do outro. A discussão política opera mais na lógica das torcidas organizadas do que na construção de um debate real. Ou, como disse Helena Vieira, “é o ativismo que não está disposto a nada além de seus monólogos e seus momentos de estrelato.” Poderia citar outros exemplos, mas ficarei por aqui.
O tribunal da internet está cheio de boas intenções, mas é também o terreno fértil da hipocrisia. Quem não demanda uns biscoitos, que atire a primeira pedra.
Comments