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Foto do escritora palavra solta

Remakes, Nova Ordem e bebês de Dnipro

por Flávio Morgado



Os bombardeios à Ucrânia. Fonte: G1



Começou a guerra. Um pulo da cama. Não era blefe, e imediatamente todas as manchetes são tomadas com a invasão russa à Ucrânia.


Todas as minhas aulas são interrompidas, não por um míssil, mas pela polvorosa urgência da molecada em querer saber: Vamos entrar numa Terceira Guerra Mundial?


Corro a leitura, estabeleço as ligações didáticas em meu caderno de anotações e chego esbaforido na escola. Não era só o alunato com a cara espantada, mas inclusive meus colegas. Os de Geografia e História imediatamente puxam suas teorias, debatem, tomam seus partidos. Os alunos tentam escutar o que sobra passando ao redor das rodinhas de professores. Ponho o jaleco e me posiciono frente a eles.


Pode ser a Terceira Guerra, professor? O Brasil pode entrar? Quem ganha? Quem está lutando? O que é uma guerra? Gosto dessa última pergunta e vou no gancho dela. Pois mais do que nos perguntar o que seja uma guerra, afinal parece a pergunta basilar, a justa, entendê-la, parece-me primeiro ser necessário atravessar outra questão: o que é uma nação?


Perante todas as nuances que desenham um imaginário coletivo, qual a que tem maior resistência em sua liga: o peso histórico que reivindica Putin, a questão étnica que reivindica a Ucrânia, a liberdade ou a soberania de fronteira, que defendem Estados Unidos e Otan? Quais são os interesses por trás da pergunta “o que é uma guerra”? Vamos pelas partes.



Mapa de expansão da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas



1 – Contexto histórico


A formação do Estado de Kiev, nome hoje dado à capital da Ucrânia, teve início no século 9º. Importante rota de comércio, o local esteve sob a influência da fé cristã ortodoxa. O domínio regional definhou, porém, ao longo dos séculos seguintes, quando Kiev foi sucessivamente ocupado por outros reinos, entre eles o lituano e o polonês.


Até meados do século XVII, a região viveu autônoma dentro das estruturas de um regime feudal em transição, quando assinou um acordo de proteção com o Czarismo russo (já então centralizado, e, portanto, começando seus avanços imperiais pela Europa Oriental). Sobre o tratado, há divergência entre os historiadores, versões que acreditam que é a partir desse momento que se estabelece o domínio russo, e outras, que acreditam que ali já se estabelece um princípio de autonomia da Ucrânia.


O que de fato temos é o início de uma relação problemática que encontraria o seu auge no século XX com a formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, abarcando toda a diferença étnica sob uma mesma bandeira. É deste período um dos episódios mais sombrios da história ucraniana, o Holodomor ("holod", de fome, e "mor", de praga ou morte), quando mais de 3,3 milhões de ucranianos morreram de fome durante o regime soviético. Há vasta discussão sobre a interpretação histórica do período.


A independência de fato só viria após o colapso da URSS em 1991, e desde então uma gangorra na política nacional ucraniana entre aqueles que defendem a sua ocidentalização e consequente saída da órbita de Moscou, e aqueles que acreditam na possibilidade de fortalecimento de um bloco pró-Rússia.


Putin soube se valer dessas oscilações, e foi imediatamente após a saída de um aliado seu da presidência ucraniana, que o russo ordenou a invasão da Criméia, em 2014.




Putin e seu "heroísmo viril"


2 – PUTIN


Ex-chefe da KGB, Vladimir Putin fez toda a sua carreira política como um fiel espião e partidário da URSS. E embora não tenha engrossado o coro da tentativa de golpe de ex-agentes em 1991, Putin sabia que seu caminho político, feito à base de muitos dossiês e bravatas, era promissor.


Soube ascender durante a débil presidência de Yeltsin e após a sua renúncia, começou a sua escalada de poder. Logo em seus primeiros anos, fez valer o seu “URSS again”, anexando a Chechênia e reprimindo opositores. Seu lema era um certo retorno centralizador da política, sem abrir mão das vantagens de uma economia de mercado. O que, por um lado, gerou grande crescimento econômico com altos índices de satisfação social, mas por outro, relegou a Rússia a uma economia de oligarcas e traficantes de informações. O passo seguinte à reorganização interna, seria recuperar o antigo prestígio da Rússia perante a Europa, e sobretudo, frente aos americanos.


Quando em 2014, Putin anuncia a invasão da Crimeia, alegando perseguição aos 17% de russos que vivem, majoritariamente, no leste ucraniano, fez valer uma série de justificativas que perduram até hoje: “neonazistas matam russos”, “a ocidentalização ucraniana permite o crescimento de grupos terroristas”.


Ponto fundamental sobre uma análise em torno do “putinismo” é compreender que, embora haja um esforço de quase má-fé em assimilá-lo a qualquer possibilidade de regime socialista, a égide do governo Putin é um capitalismo selvagem, um capitalismo de Estado, opressor até o talo. Fruto de uma formação política como chantagista e que galgou junto aos seus comparsas (os oligarcas russos) uma apropriação mafiosa das forças estatais e econômicas da Rússia. Seu afã não é uma nostalgia soviética, mas um imperialismo czarista atualizado.


Um apelo a uma imagem histórica de imenso peso moral (o nazismo), e o índice de um inimigo eternamente invisível (o terrorista). São claves poderosas no discurso bélico. Ainda que elas estejam perfeitamente em sintonia com outros receios de Putin: como a possibilidade de entrada da Ucrânia na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, uma organização militar criada no contexto do pós-guerra e a mando dos EUA), o que deixaria a Rússia numa vulnerabilidade política e militar no próprio continente.


O curioso é que apesar de todos as justificativas de Putin, trazendo a força de um inimigo nazista e tirânico, é a Rússia que é considerada a pior nação para se ser um jornalista e a que mais persegue homossexuais.


Mas como vinha tentando explicar, as guerras são remorsos que aproveitam oportunidades. Putin não está preocupado com a idoneidade de seus motivos, mas a brecha única de avanço. Uma nação, aqui, é uma arma apontada.




Zelensky, o presidente da Ucrânia, em cartaz



3 – ZELENSKY


Comediante, celebridade nacional, bonachão, falastrão e surfista da onda conservadora que varreu o mundo nos últimos anos, Zelensky é a brecha que Putin precisava.


Aproveitando-se do sucesso nacional que a série “O servo do povo”, a qual protagonizava como um jovem professor de História que, revoltado, vai ganhando notoriedade até chegar à Presidência do país e fuzilar todo parlamento, Zelensky focou em uma campanha inteiramente feita pela internet, não foi a um debate e elegeu-se com 73% dos votos.


Seu discurso era o de uma Ucrânia livre, mas documentos vazados pela oposição de Donald Trump em 2019 revelaram que o aclamado ator ucraniano era uma espécie de lacaio do trumpismo, inclusive sendo encomendado um dossiê contra o filho do candidato Joe Biden, que trabalhou em uma empresa ucraniana. Isso inflou Putin.


Quando tomou posse, em maio de 2020, o presidente ucraniano anunciou a dissolução do Parlamento já em seu discurso inaugural. A medida, legalmente controversa, foi tomada para que ele pudesse convocar eleições legislativas antecipadas. O objetivo era obter maioria no Parlamento e formar um governo que conseguisse aprovar suas promessas de campanha.


Na posse, ele também afirmou que sua primeira tarefa seria acabar com o conflito no leste do país, onde estão as regiões separatistas reconhecidas nesta semana pela Rússia como independentes. Desde 2014, separatistas da região de Donbass tentam proclamar independência, com apoio dos russos.


Perdido em meio ao enfraquecimento geopolítico dos Estados Unidos, seduzido pela OTAN e obsediado por Moscou, Zelensky não consegue conter os separatistas do leste e pouco antes da invasão, a Rússia os reconhece como um estado independente.


Do ponto de vista militar, nunca haveria chances para a Ucrânia (a não ser com uma coalizão internacional, que provavelmente já não contaria com a China, que vê na Rússia uma boa sócia na Nova Ordem Mundial). Mas do ponto de vista político, a onda de descrédito na política tradicional acabou por jogar uma indefesa lebre na cadeira presidencial. Agradece o lobo. Uma nação, aqui, é um algodão entre dois cristais.




Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos



4 – BIDEN


E aí fica a pergunta que atiça o pátio: “o que levaria a uma escalada de Terceira Guerra Mundial?”. A entrada dos EUA. Ela acontecerá?


Joe Biden, velho político tradicional, com seu ar de Clint Eastwood aposentado, apesar de ser um democrata (e já está mais do que na hora de entendermos que a disputa estadunidense é sempre direita x direita), é ainda mais um presidente dos EUA bancado por uma imensa indústria armamentista. Mas que, por questões políticas (nunca éticas), prefere terceirizar seus conflitos e maximizar seus lucros desde pelo menos 1960. Entrar numa guerra internacional diretamente é pesado, exige do Congresso, exige dos nossos traumas históricos.


E além disso, não se pode esquecer jamais das 6 ogivas nucleares que a Rússia possui. Somadas ao poder nuclear dos EUA, o mundo poderia ser destruído por onze vezes. Isso não é bom para a gerência.


Por outro lado, seduzir a Ucrânia para dentro do seu bloco militar poderia ser uma respirada e tanto de um império que agoniza. Daria uma amplitude política e militar aos estadunidenses, que nem na Guerra Fria foi tão potente. Mas o mundo mudou.


Putin sabe ler o curso do tempo, e, talvez para o nosso azar, ele jogue a seu favor. Porque não haverá possibilidades de os Estados Unidos assumirem um partido agora, mesmo que use de seus aliados, Putin não temeria em colocar as consequências na mesa. É uma mão pesada no blefe e na coragem.


A guerra começa no inverno, quando quase todo gás de aquecimento de lares europeus depende da Rússia. Seis ogivas nucleares é uma turma e tanto e o que provavelmente restará ao Biden será uma série de coletivas ranzinzas, enquanto Kiev é tomada. Essa humilhação, essas pancadarias frente às atadas mãos de um Tio Sam também estavam no jogo, faz parte da estratégia.


Creio que nem mesmo a tomada de partido (histórica) da Suíça, para efeitos capitalistas, uma nação-banco, venha sanar a gana (ou a loucura) de guerra que move Putin. A nação cujo o destino é o manifesto da liberdade, hoje é um valente com medo.



Avanço da OTAN após o colapso da antiga URSS



Então nos restará acompanhar, com alguma apatia que já nos cabe e é muito bem neutralizada nas redes, esse remake, essa Guerra Fria versão SBT, que apesar de todo pastiche, talvez ainda nos dê o vislumbre de uma nova ordem mundial. Um mundo orientalizado? China e Rússia? Talvez.


Fecho pensando em duas imagens que me marcaram nesses dias:





O míssil fincado em Kharkiv. Não detonou. Cravado no chão de uma cidade ucraniana, uma espécie de instalação, escultura de guerra. Uma falha que ainda agride, uma imagem que ainda alerta.


A outra, a de uma corajosa enfermeira ucraniana. Os recém-nascidos que estavam em UTIs neonatal de um hospital infantil em Dnipro, cidade no leste da Ucrânia, precisaram ser transferidos para um abrigo antiaéreo em um nível mais baixo do prédio quando a Rússia invadiu o país. Enquanto o mundo se chocava com a escalada da guerra, e aumentavam os números de civis mortos, uma equipe médica enfileira, com uma precisão e um dever admirável, as quarenta e duas crianças. Emocionada, uma enfermeira ajeita o último bebê e murmura: “Ucrânia livre...” para um futuro que talvez fosse outro.







Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 2022



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