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Será possível reencantar as ruas brasileiras depois da pandemia de Covid-19?

Leituras a partir da obra de Luiz Antônio Simas

por Pérola Mathias


Fotografia: Maria Morgado / A Palavra Solta


“Deixa a gira girar...”


Estamos morrendo de muitas formas no Brasil atual. Além do genocídio em curso há séculos contra o povo negro, que em sua versão contemporânea mata pela pobreza, pela fome e pelas mais diversas formas assumidas pela violência de Estado, enfrentamos, agora, a crise sanitária da Covid-19. Crise esta corroborada pelo governo, e não apesar dele. Se já sabíamos antes de 2018 das intenções da milícia no poder institucional, os escândalos sucessivos que se revelam não puderam ser imaginados nem pela mente mais fértil e pessimista que votou contra eles todos que estão aí. Os crimes de locupletação e genocídio, para citar só dois dos muitos e graves, já estão mais do que provados. E eles mataram de Covid, até agora, mais de meio milhão de brasileiros. De tiro, todo dia é um, ou 28, ou 2, porque também não poupam grávidas. De raiva e de desgosto, ainda não temos números estimados, mas suponho que também sejam muitos. Vivemos em guerra. O governo brasileiro está em guerra contra seu povo desde antes da República. Então, qual a graça, ainda, de ser brasileiro? Alguém se orgulha? Alguém se diverte sendo brasileiro? Alguém ainda sente esperança em ser brasileiro?


Bem, toda vez que que escuto Os Tincoãs, lembro de fevereiro, penso no amendoim cozido com licor de maracujá de Cruz das Almas e no “fananana na na na” da sanfona de Luiz Gonzaga puxando “São João na roça”, escuto a potência do beat de Badsista com Linn da Quebrada cantando com vigor “Eu tenho fogo no rabo / melanina, poucos reais / eu sou tão misteriosa / oculta sendo voraz”, ouço e vejo Edbrass performando e improvisando som com folhas tradicionais e sagradas, dentre tantas outras coisas, eu lembro que, sim, é bom demais ser brasileira. E que o Brasil é uma desgraça, mas se não existisse teria que ser inventado.


E ninguém trata desse assunto melhor do que o professor, historiador e compositor Luiz Antônio Simas. Porque seus escritos, que ficam entre a pesquisa factual e a poesia, entre o terreno e o divino — digo assim a título de descrição, como se essas fossem coisas que pudessem ser separadas, mas não são —, buscam resgatar e mostrar a parte viva e rica da nossa cultura. Ou, como ele diz ao abrir o livro Pedrinhas miudinhas: “Os olhos brasileiros são os únicos que tenho para mirar os dias”. E, apesar de ser branco como o sol, o professor, como ele mesmo conta, nasceu de uma família nordestina instalada no Rio de Janeiro e desde criança bate tambor.


O tambor, o candomblé, a umbanda, o samba, a festa, o terreiro e as gentes na rua são fios que tecem o pensamento de Simas. Pois é na alegria e nos ritos de subversão aos projetos de morte do colonialismo e da escravidão que ele encontra a resistência que formou o que chamamos de “brasilidade”. E, com muita precisão, Luiz Antônio Simas vem observando que a desqualificação sistemática da cultura é um projeto de repressão, que ataca os elementos lúdicos e sagrados do cotidiano do pobre. Foi assim quando a polícia intervia nas rodas se samba do Rio de Janeiro no começo do século XX, apreendia violões e pandeiros e criminalizava a capoeira; é assim quando a polícia invade bailes funks, aponta a arma para o garoto que treina manobras de bicicleta e quando o presidente dissolve o Ministério da Cultura.


Mas é através da cultura, entendida pelo autor como “a maneira como um grupo cria ou reelabora formas de vida e estabelece significados sobre a realidade que o cerca: as maneiras de falar, vestir, comer, rezar, punir, matar, nascer, enterrar os mortos, chorar, festejar, envelhecer, dançar, silenciar, gritar e brincar”,[1] que se concebe a vida. Para ele, a vida não é o contrário da morte, mas do desencantamento. Os corpos incapazes de perceber a alteridade da fala, a assepsia dos shoppings centers, a dominação do movimento orgânico de locomoção pelos corpos, por exemplo, ainda que respirem, estão mortos. E, para Simas, é preciso algum grau de encantamento para resistir.



“Quem samba fica, quem não samba vai embora...”


Os desencantados que habitam ao nosso redor da descrição de Simas lembram o “blasé”[2] de Georg Simmel, aquele cuja rotina na metrópole, de excesso de estímulos nervosos, o tornou anestesiado, caracterizado pela impessoalidade. Já os encantamentos são precisamente tudo aquilo que resiste ao colonialismo e ao imperialismo europeus, a um modo de pesar patriarcal, a uma tentativa de adequação dos corpos a comportamentos associados a uma ideia de civilização. O encantamento está no encontro, na preservação da ancestralidade, na adaptação dos mitos (formas de compreensão do mundo) e dos ritos (formas de celebrar).


O samba, a macumba e o carnaval são as expressões mais exploradas por Simas, pois são expressões de brasilidade fincadas na herança afro-ameríndia, muito mais do que europeia. E ainda que sejam a prova dos nove do brasileiro, é uma face da brasilidade que não é outra da violência, mas a mesma. E é através das celebrações dessas expressões (bem como de diversas outras que não caberão neste texto, mas que Simas explora em seu Almanaque da brasilidade, como as festas de junho) que se cria um espaço de subversão de cidadanias negadas. O autor conta anedotas e acontecimentos cotidianos que o emocionam ao longo de O corpo encantado das ruas, como no momento em que, passando pela feira, um vendedor começou a cantar uma música de Dona Ivone Lara e foi respondido com os versos seguintes da canção pela verdureira da barraca da frente. Nisso o samba foi levado em frente e, ao fim da cantoria, a feira toda aplaudiu. Nesse episódio, um pouco do livro fica resumido na frase que abre o capítulo que o narra: “As ruas encantam a vida na miudeza que ninguém suspeita.”


A vivacidade das ruas, transformada hoje mais como lugar de passagem do que de vida e celebração propriamente dita, precisa do encontro entre os corpos. É justamente o samba “a entidade mais poderosa das falanges da rua”, diz no livro supracitado. E mais: “O samba é um desconforto potente para que o Brasil se reconheça como produtor constante de horror e beleza”. Ao ler esse trecho do livro de Simas, fiquei lembrando da série lançada pela Globo sobre o bicheiro Castor de Andrade, em que andam juntos e interlaçados o crime e o gozo no futebol e no samba. Na série, além de vermos os personagens que tiveram suas vidas marcadas por um momento único de catarse com a ascensão do time do Bangu, que jamais chegou novamente àquela posição de destaque nos campeonatos estadual e brasileiro, temos os depoimentos de como os jogadores conviviam com a duplicidade entre o trabalho e o assédio do ambiente do crime — que era violento, por suposto —, bem como uma rede de televisão que, além de cobrir toda aquela história dentro da legalidade, abria espaço para a figura de Castor enquanto personalidade pública dentro de sua própria programação. É mais um exemplo das negociações e paradoxos da cotidianidade brasileira.


Na série está um drops de um assunto abordado por Simas nos dois livros citados, Pedrinhas Miudinhas e O corpo encantado das ruas, mas aparece mais debulhado, histórica, cultural e artisticamente em Pra tudo começar na quinta-feira, escrito em parceria com Fabiano Fabato, que são as escolas de samba do carnaval carioca.


Para o autor, o carnaval é a festa popular mais política do país. Bem, talvez sim, porque tem dimensão nacional. O povo na rua, disposto a brincar, se fantasiar, criar músicas, renovar ritmos, incorporar novas identidades, é a recriação da vida, transformação do território e a ativação das encruzilhadas. Encruzilhada é uma categoria fundamental para estruturação do pensamento de Simas. Em entrevista a A Palavra Solta, realizada pelo editor Flávio Morgado, ele esclareceu que pensa a encruzilhada não como um espaço de dúvida, mas como um espaço de disponibilidade para reflexão, para a música, para aula, para literatura...


A encruzilhada e os encantos do axé aparecem também nas composições de Luiz Antônio Simas. Recentemente, teve músicas suas gravadas por Fabiana Cozza, no disco “Dos Santos” (2020) e por Marcelo D2 em “Assim falam meus tambores” (2020). Mas foi uma faixa gravada pela cantora carioca Jéssica Ellen que mais me chamou atenção. Se chama “Macumbeira” e seus versos dizem:


Você quer matar a mata

Mas a mata te mata seu escroto

...

Você quer matar a rua

Mas a rua te mata, seu canalha

...

Calundeira

Já curei fazendo saia rodar

Preta Velha

Sou sereia das águas do Opará

Marisqueira

Guerrilheira das guerras do Brasil

Macumbeira

Dei um drible na morte, ela caiu


Como lidar com a morte tal como ela se desenha aos brasileiros: seja pela pandemia, pela violência policial, pela ineficiência do Estado em gerir não só a sociedade, como também o território? No caso do território da natureza, ela é imprescindível para a realização e da expressão das religiões afro-indígenas. E o que vivemos hoje no país — bem como há 500 anos — é a exploração desmedida, comandada por um psicopata loiro de olhos azuis, e a intolerância religiosa. E a música de Simas aponta uma direção poética a todo seu esforço histórico intelectual de interpretação da brasilidade: driblar a morte via o exercício de suas crenças fundamentais.



“E se a gente nunca se entregar?”


Atravessando esse período crítico de isolamento social e crise política, uma pergunta que fica latente ao ler a obra de Luiz Antônio Simas é: como reencantaremos a rua? A questão se torna mais complicada, visto que há também nesse momento uma crise narrativa de negar ou distorcer fatos históricos, como a ditadura militar.


Ao invocar a “miudeza” como seu ponto de partida, Simas crava em seu método de trabalho o apreço pela micro história — ou nano história — e afirma que a história está no afeto: apreço pela historicidade daqueles que não tem história. Quanto aos revisionismos, reivindica as teses da história elaboradas por Walter Benjamin e relembra que, para construir o futuro, é preciso estar constantemente se disputando o passado. Inclusive, naquilo em que ele é silenciado, pois o fascismo “ataca os mortos para atingir a vitalidade dos vivos. É na disputa pelo passado que a gente busca um futuro minimamente possível”, disse à entrevista.


Se não há outro — e nem tem por que se ter — cotidiano que não o brasileiro, é preciso olhar com mais amor e afeto às “coisas nossas” e, como diz Gilberto Gil, ter “Fé na festa”.



Notas

[1] Em “A alma encantadora das ruas”.

[2] Ver o texto “A metrópole e a vida do espírito”.

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