por Pérola Mathias
Fotografia: Uanderson Britess
Silêncio profundo. Silêncio que ocupa o vácuo que a notícia da morte precoce, repentina, inaceitável de Letieres Leite nos trouxe. Silêncio em respeito ao maestro, ao mestre, ao gênio da música, ao cara que falava rápido porque sua sensibilidade para tudo ao seu redor era grande demais. Dava para sentir até no piscar de olhos sua espirituosidade para com o mundo e sua espiritualidade sobre o cosmo. Sua passagem para outro plano abre um buraco à nossa frente. Sua perda no auge de sua produção e de sua transmissão de saberes ancestrais para os mais diversos interessados nas coisas do mundo é uma facada nas costas. Coisas do mundo, minha nega. Aos poucos a gente vai entendendo. E em breve os tambores voltarão a soar e a música novamente retornará à vida. E não dá pra dizer que voltará menor ou mais triste, porque a solidez do caminho aberto por Letieres é de várias sementes plantadas e de construções harmônicas bonitas demais para virarem ruína.
“Chorar não faz esquecer a dor”, ele usava de exemplo quando ia explicar seu método UPB (Universo Percussivo Baiano), que se trata, em primeiro lugar, de uma explicação prática sobre a fundamentação de toda a música brasileira e afrodiaspórica. Não existe música brasileira que não seja afro-brasileira. É óbvio, mas precisa ser dito (porque já está provado que não existe evolução do tempo ou do pensamento de uma forma geral, basta ver que temos um réptil na presidência, com todo respeito aos répteis, ou que bandeiras da monarquia estampam janelas num país em que metade da população passa fome). E isso ele nos entregava mastigado, de forma didática, ensinando, em primeiro lugar, a importância da oralidade, a primeira forma de transmissão de saber humana.
Todo seu conhecimento foi aprendido na prática, tocando, viajando e ensinando. Percebeu que não bastava saber ler partitura, porque cada cultura guarda uma particularidade muito específica que a forma. E esse segredo, em toda a extensão do que é o Atlântico Negro, está no ritmo. Mais especificamente na menor unidade do pulso: a clave. Através da clave, era possível mapear as raízes do que se toca e se escuta. Na música brasileira, identificava principalmente três raízes africanas (e como eu gostaria que todo mundo pudesse ver o desenho dessa árvore que ele fez e eu mesma só vi uma vez. Como Letieres tinha formação em Artes Plásticas pela UFBA, era provavelmente um desenho pintado por ele mesmo).
Mas por que considerá-lo tão genial por isso? Ora, primeiro porque desde que a cultura africana se fundiu aqui na colônia com o holocausto da escravidão, não tínhamos uma explicação tão clara sobre nossa própria cultura – é muito mais do que música, é ciência, é visão de mundo, é a formação de uma nação. Segundo, porque o maestro fez disso um método de ensino, que parte, antes da música, do corpo. É no corpo, mais do que na partitura, que se lê, se sente e se produz a música, a partir do momento em que se toma consciência da clave. Aprendeu isso a duras penas quando foi estudar na Europa e entrou para a orquestra do cubano Alfredo de Lá Fé.
A clave, sendo um padrão rítmico mínimo, é uma informação matricial para se juntar as peças da herança das músicas de matriz africana. Outras duas informações fundamentais, que fazem parte do método desenvolvido por Letieres para compreensão da música afro-baiana, são a de que o sistema de clave se repete e de que ele é circular. Ou seja, ele pode mudar de posição infinitas vezes, abrindo um leque de possibilidades de composição rítmica, mas sua estrutura, seus dados fundantes, continuam os mesmos, o que faz com que desse sistema se derive inúmeros ritmos. Por exemplo como aconteceu com o samba, do samba de roda ao partido alto carioca, derivando da clave mãe Cabula, ou Cabila.
E daí que vem a última – e polêmica – constatação de Letieres Leite, que se adotada hoje, faz com que a maioria dos livros sobre samba e música brasileira precisem ser revistos: a negação da síncope, considerada um tempo fraco. Mas na música afrodiaspórica o acento vai acontecer sempre exatamente nesse momento, “então ele não é fraco, é forte, não é exceção, é regra”, dizia o maestro, e pontua, também, a identidade de uma cultura.
Esse era o grande ensinamento que Letieres Leite vinha transmitido em sua vida, seja quando criou a AMBAH, ou no projeto social do Rumpilezzinho. Só que a genialidade dele partia daí para a criação musical propriamente dita, se amplificando na Orkestra Rumpilezz, que inverte a posição dos instrumentistas, trazendo a percussão para o primeiro plano (da música e do palco), vestida de terno, e jogando os sopros, de bermuda e chinelo, para trás, e no Letieres Leite Quinteto. E se ramificava nos inúmeros, incontáveis arranjos e participações em discos. Como observou a jornalista Paula Carvalho em seu twitter (@paulacnc), o Discogs do maestro precisa ser atualizado, para que sirva como base de pesquisa mesmo, pois, diz ela, “a probabilidade de qualquer música brasileira dos últimos 30 anos bonita que vc escuta hoje ter dedo de Letieres é altíssima” – Caetano, Betânia, Zé Manoel, Lucas Santtana, Márcia Castro, Ivete Sangalo, Daniela Mercury, Lazzo Matumbi, Cheiro de Amor, Olodum etc etc etc.
Daria tudo para ouvir novamente a história dele na Feira de Sete Portas sentada num teatro assistindo à Orkestra; ou mais uma entrevista em que ele explica o sistema “extrativista” que se tornou a axé music; dançando ijexá enquanto rege; nomeando o melhor percussionista do momento; contando de uma turnê com Ivete; a ponte afro-oriental-baiana; o lançamento da releitura de “Coisas” etc. Não faltaria assunto, não faltaria história, nem composições extraordinárias.
Como também disse Paula, não cabe numa mesma sentença que tenha Letieres Leite outra palavra que não seja vida – e música.
Axé, maestro
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