por Marcelo Reis de Mello
PEQUENO DICIONÁRIO CRÍTICO
OU DECÁLOGO DE ROBERTO PIVA
Roberto Piva. Foto retirada do site de Cláudio Willer [https://claudiowiller.wordpress.com/]
1. Delicadeza
Talvez não seja delicada em superfície (não é?), mas as camadas mais profundas da poesia de Roberto Piva nascem de um Princípio de Delicadeza.
Não esquecer a contrapalavra de Rimbaud:
Inútil beleza/ A tudo rendida/ Por delicadeza/ Eu perdi a vida.
Um excêntrico professor francês alega que o Marquês de Sade deveria ser considerado o autor de Le Principe de Délicatesse, por sua obstinada tarefa de perversão da Ordem (da Moral, do Corpo, da Literatura, do Estado).
Piva: “Só a desordem nos une”.
§ Polidez
A Delicadeza do poeta só se aproxima da polidez (domesticação social dos gestos) por via da loucura, do excesso, do êxtase. Ekstasis = sair de si, desprender-se. O corpo delicado não é dócil nem angélico, a não ser quando conspira sutilmente contra si:
a) um indivíduo tão dócil que acaba por divulgar os mecanismos eróticos da sua escravidão (sadmasoquismo);
b) estes anjinhos de rodoviária dos poemas, com suas bundinhas ariscas de fora, pulando poças sujas pela cidade, depondo as asas em saunas escuras e quartos de hotéis neon.
§ Delicadeza e Morte
Sobretudo nos dois primeiros livros de Piva, Paranoia e Piazzas, a metrópole se torna necrópole: “o homem é o único animal que armazena seus mortos”. Mas o olhar seguiria atento à vida e ao mínimo, sem negociar com os destroços:
(...)
iluminar a morte minimalista
do gaviãozinho
do gafanhoto-folha
do urso dos Andes
Ou
(...)
a tarde desaba seu azul sobre
os telhados do mundo
você não veio ao nosso encontro & eu
morro um pouco & me encontro só
numa cidade de muros
a água que corre não correrá
jamais a mesma até o poente
minha dor é um anjo ferido de morte
(...)
Ainda sobre isso, um exemplo oriental de Barthes: “delicadeza pura: fazer de conta que morreu para não chocar, ferir, embaraçar os que morrem.”
§ A Delicadeza de Roberto Piva se encontra, além disso, no obsceno social, onde delicado coincide com efeminado (diante de qualquer condenação viril).
Puer delicatus era o escravo favorito, e o mais mimado, de um senhor romano. Este Menino delicado substitui (com o decadentismo tipicamente itálico) o Erómenos grego. Um dos mais célebres pueri delicati foi o jovenzinho catamita Esporo, favorito do imperador Nero, castrado por ordem do seu dono e com quem posteriormente se casou.
“O yin nos olhos do desejo - a androgenia como desejo erótico e, acima de tudo, como projeto ético - utópico. Um mundo sem muros polares, mas de deuses ambíguos, dionisíacos, doces, fortes, loucos e deliciosos.” [Gláucia Costa de Castro e Pimentel]
Porno-samba para o Marquês de Sade
esta homenagem coincide com a deterioração do Gulag
sul-americano minado pela crise de corações & balangandãs
econômicos onde se mata de tédio o poeta & de fome o
camponês & sobre os pés femininos se calça a bota de
chumbo de várias cores gamadas com Hitleres de plantão em
cada esquina recoberta de saúvas & amores escancarados
como túmulos onde tuas coxas, Marquês, servem de amparo
delicado para o garoto que chupa teu pau enquanto uma
mulher ruiva te cavalga Assim, anotemos o nome da
vítima-orgasmo-blasfêmia antes que as araras entrem na
orgia com seus estimulantes bicos recurvos & um
estratagema de cipós afague os sóis da desolação
quotidiana em nível de Paraíso A noite é nossa Cidadão
Marquês, com esporas de gelatina pastéis de espermas &
vinhos raros onde saberemos localizar o tremor a sarabanda
de cometas o suspiro da carne.
2. CENTRO
Piva foi um Extremista no Centro (não de centro) e raramente centrista, como quando manifestou apoio à candidatura de Gastão Gonçalves da Silva (militar, Agulhas Negras, PMDB) a deputado estadual, nas eleições de 1982.
“Não sou um poeta da cidade, sou um poeta na cidade. E se pudesse, já estaria longe daqui. São Paulo me fascina, mas também oprime”. Aqui, penso na proximidade entre Piva e Guilherme Zarvos, poeta de Morrer e Zombar.
O Centro paulistano de Piva serve de bunker delirante, implosivo e periférico a partir do qual evoca seu anarco-monarquismo, muito mais destinado a destruir as instituições (qualquer centro de poder) do que a integrá-las.
Sua poética reivindica uma epistemologia da erosão.
Sulcar incessantemente o centro evita também a mitologização da margem:
PORRADA
Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil
E ainda:
(...)
São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento
do Brasil?
Até teus comunistas são mais puritanos que padres.
Pardos burocratas de São Paulo, vamos fugir para
as praias?
Ó cidade das sempiternas mesmices, quando te racharás
ao meio?
Quero cuspir no olho do teu Governador e queimar
os troncos medrosos da floresta humana.
Ó Faculdade de Direito, antro de cavalgaduras
eloquentes da masturbação transferida!
Ó mocidade sufocada nas Igrejas, vamos ao ar puro das
manhãs de setembro!
Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei
minha bunda em ti?
Fornalha do meu Tédio transbordando até o Espasmo.
Horda de bugres galopando a minha raiva!
Sei que não há horizontes para a minha inquietação sem
nexo,
Não me limitem, mercadores!
Quero estar livre no meio do Dilúvio!
3. ARTE E VIDA
“Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”
Ou
“O Brasil precisa de poetas perseguidos pela polícia, o resto é literatura”
Ou
“Todo poeta, todo artista tem que cair na vida. Enquanto não cair na vida fica fazendo essas coisas de gabinete, essa estética cabaça”
Ou
“Quando nossos poetas vão deixar de serem brochas para serem bruxos? Quando nossos poetas vão cair na vida?”
Ou
abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.
poesia em cascatas floridas com aranhas
azuladas nas samambaias.
todo trabalhador é escravo. toda autoridade
é cômica. fazer da anarquia um
método & modo de visa. estradas.
bocas perfumadas. cervejas tomadas
nos acampamentos. Sonhar Alto.
4. SURREALISMO, RECALQUE
Cláudio Willer:
O recalque brasileiro do surrealismo pode ser associado às alternativas aceitas por nossos letrados: a criação mais cerebral, seja buscando a clareza do sentido, seja pelo caminho da experimentação formalista.
Roberto Piva:
estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente
defuntos acesos tagarelam mansamente ao pé de um cartão de visitas
...
O Espírito Puro vomita um aplauso antiaéreo
borboletas de zinco devoram as góticas hemorroidas das beatas
...
a lua tem violentas hemoptises no céu de nitrato
há jovens pederastas embebidos em lilás
e putas com a noite passeando em torno de suas unhas
5. FORMAÇÃO INTELECTUAL
É bonito pensar naquela garotada rebelde na casa do filósofo Vicente Ferreira da Silva (que, embora tenha morrido cedo demais, foi o responsável por boa parte da sua formação intelectual). O filósofo organizava grupos de estudos para estudarem Heidegger, Nietzsche, Sartre. Eles também promoviam leituras de poesia, muito graças à Dora, casada com Vicente, que também era poeta (mesmo bem diferente de Piva, Rodrigo de Haro, Roberto Bicelli, Cláudio Willer e os outros).
Contra o estereótipo que persiste, não eram apenas doidões atrás de epifanias fáceis: “Com toda a caretice das ruas, suas leituras desafiavam o homem médio e os poetas que naquele momento se formavam. Fazia parte dessa busca por novidades e formação, não apenas compras de livros (com eventuais furtos como chegam a confessar em entrevistas), como também a busca pelos lançamentos internacionais, de sorte que nunca ficassem defasados em relação aos lançamentos editoriais da França, Inglaterra, Itália, EUA e Espanha. Frequentou as tradicionais livrarias Francesa e a Italiana e chegavam mesmo a importar os livros recém lançados pelo grupo beat, diretamente de S. Francisco, da City Light Books, de propriedade de Lawrence Ferlinghetti.” [Gláucia Costa de Castro e Pimentel]
Foto de Joy, filha do jornalista Décio Bar, em 1962
Da esquerda para direita: 1. Demétrio Ribeiro 2. Cláudio Willer 3. Décio Bar 4. Rodrigo de Haro 5. Eduardo 6. Cassiano 7. Roberto Piva 8. Marcos Ribeiro
6. A POESIA É [ou quantos amigos você fez hoje]
Onde estará você agora, enquanto nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver?
Estou no Chivas da Haddock Lôbo / são 3 horas da tarde / quinta-feira / fevereiro / 1972 / tomo um Milk Shake enquanto espero um Anjo entre as mesinhas & as árvores que cercam este pedaço de mundo batido pelo vento paulista & o sol universal / as fôlhas arrastando atrás de si o sonho dos duendes & eu estou com vontade de ouvir Changelling do Doors na voz de trovão-machucado de Jim Morrison da última fase & gostaria de ver Baudelaire aparecer por aqui / com os cabelos compridos pintados de verde & sua tartaruguinha prêsa numa coleira de cachorro / recitando les jornaux intimes / principalmente “j’ai trouvé la definition du Beau, de mon Beau. C’est quelque chose d’um peu vague, laissant carrière à la conjecture” / não separando mais o sonho & a realidade-limitadora colorindo as ruas / os prédios / as casas / numa visão psicodélica dos Paraísos Artificiais & o mundo seria uma eterna festa num ciclo cósmico infinito & o ser humano seria o Anjo Universal cheio de amôr como eu estou agora. Dois garotos conversam sôbre alguma coisa bem louca na mesa em frente & um deles gostaria de viajar num disco voador / tripulado por estranhas aranhas elétricas / olhando a lua cheia. Às vêzes quando entro num supermercado eu me sinto absurdo & percebo as caixas coloridas / os pêssegos / as batatas / olhando para mim com seus olhos doces e interrogativos / como se quisessem ensinar alguma coisa bem terrível para minha consciência tranquila de ser humano. Lembro de uma poesia de T. S. Eliot em que ele diz: “Não sei muita coisa acêrca de deuses: mas creio que o rio / É um poderoso deus castanho-taciturno, indômito e intratável...” Isto me faz pensar que existem muitos deuses & que a verdade nunca pendeu do braço do Absoluto & estamos vivendo ou morrendo nesta bola colorida chamada terra. Quem já ouviu Live de Johnny Winter num dia de muita alegria? Quantos amigos você fêz hoje? O que você sonhou esta noite? Você já viu o pôr-do-sol em Eldorado ou na Riviera paulista? Você está amando? As flores pensam / os músculos são invadidos pelo músculo elétrico / eu me sinto muito feliz / meu coração zumbe / eu percebo as estrêlas lilases na tarde vermelha / minha mente está sendo povoada pelos meus amores / a música desce até meu estômago / até a última gôta de alegria / meus pulmões são jovens & perfeitos / um deus acaba de nascer numa fôlha de plátano trazida pelo vento / os telefones do mundo começam transmitir mensagens eróticas / as janelas explodem em sinfonia o mundo é um maravilhoso lugar para se nascer / o espaço é esplêndido / eu vejo / eu acredito como Whitman no corpo & nos seus apetites / eu sinto a vida nos intestinos / eu tenho muitas verdades dentro do meu coração de carne / há um girassol abandonado nos teus olhos, Paulo? Que correnteza nos levará à deriva hoje? Sandwiches / ostras / latas de cerveja / enxurrada maravilhosa saída da guitarra de Johnny Winter numa tarde de sol de fevereiro em São Paulo! Pequenos monges hippies de olhos azuis como laranjas transam agora na Haddock Lôbo esperando cair a noite com seu vestido de mistério. A locomotiva do escorpião vai levando meu amigo Ivan para que cômetas? Onde estará você sonhando agora / enquanto as nuvens lançam sombras loucas sôbre estas mesas & lindos rostos pagãos me observam viver? Um sol hippy azula minha cabeça sou sacudido pela visão da Eternidade. Estranhas galáxias brilham nos olhos do garôto da mesa em frente & ele quer falar de uma praia cheia de mistério onde ursos & pinguins sentariam ao redor do fôgo perto de sua barraca azul & fariam juntos uma oração à alma do mundo / perdidos / longe / numa ilha de fumaça coroada pelo arco-íris! O centro da carne & três mil vivas à Mick Jagger que tem jôgo de cintura & três mil vivas à Roberto Bicelli que descolou isso & três mil vivas ao meu amigo Sérgio Mamberti que é um gênio & tem uma alma linda nos olhos & três mil vivas aos meus novos amigos Pablo, Berin, Paulo, Paulinho, Margareth, Marcia, Cecília, Victor, Leli, Vova, Antônio que acreditam nas cores nos vulcões na natureza tremendo de felicidade. Os deuses começam ficar alucinados às seis horas da tarde quando o sol se dispõe a guiá-los nos sonhos & criar na nossa imaginação a loucura da lembrança a saudade da pirataria dos mares de antigamente onde Fernando Pessoa foi buscar a sua Odisséia & soprou sôbre nossas cabeças o furacão de sua Ode Marítima. A POESIA É UM PRINCÍPIO MUSCULAR (Michael McClure).
7. AMIZADE [uma cena toda nossa]
Na laje-varanda de um apartamento do Condomínio Palmares, zona norte do Rio – ou de pé numa calçada do centro, com copos de cerveja escorregando das mãos – o poeta Italo Diblasi [a.k.a. Louis Garrel das Bocas da Glória] recita “Eu sou o jet-set do amor maldito”, publicado no livro Abra os olhos e diga Ah!:
eu sou o jet-set do amor maldito DENTRO DA NOITE & SUAS CÓLICAS ILUMINADAS os papagaios da morte com Aristóteles na proa do trovão DISPOSIÇÃO DE IR A DERIVA NOS DADOS DO AMOR espinafre pela manhã & queijo em pasta almas-esportivas com flores entre os dentes minha laranja se abrindo como uma porta TUA VOZ É ETERNA eu vejo a mão cinzenta rasgar a parede do mundo ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA.
8. ECOLOGIA
“Pasolini começou a contagem regressiva do nosso planeta a partir do desaparecimento dos vagalumes na Itália. Eu poderia começar a mesma contagem regressiva a partir do desconhecimento & desaparecimento da abelha Jataí no Brasil. Acredito que, para a defesa do nosso planeta, as melhores ideias, como disse Edgar Morin, são as ideias ‘biodegradáveis’”.
Ou:
quero dividir com você a ventania a morte
& as flores do pessegueiro.
sinistras aves de rapina.
fontes de mel. pequena cidade do
interior donde você brota como
Amor-Perfeito.
imensa & delicada adolescência.
tambores dos quintais & do riacho
nas asas dos anjos da Memória.
9. PARKINSON
“Desenvolvi o Mal de Parkinson como o papa [referindo-se ao então papa João Paulo II] de tanto ter de conviver com cristãos!”.
10. [POEMA] VERTIGEM
Eu sou a viagem de ácido
nos barcos da noite
Eu sou o garoto que se masturba
na montanha
Eu sou o tecno pagão
Eu sou o Reich, Ferenczi & Jung
Eu sou o Eterno Retorno
Eu sou o espaço cibernético
Eu sou a floresta virgem
das garotas convulsivas
Eu sou o disco-voador tatuado
Eu sou o garoto e a garota
Casa Grande & Senzala
Eu sou a orgia com o
garoto loiro e sua namorada
de vagina colorida
(ele vestia a calcinha dela
& dançava feito Shiva
no meu corpo)
Eu sou o nômade de Orgônio
Eu sou a Ilha de Veludo
Eu sou a Invenção de Orfeu
Eu sou os olhos pescadores
Eu sou o Tambor do Xamã
(& o Xamã coberto
de peles e andrógino)
Eu sou o beijo de Urânio
de Al Capone
Eu sou uma metralhadora em
estado de graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto
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