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Foto do escritora palavra solta

Sobretudo, a diferença

Atualizado: 14 de set. de 2020

por Flávio Morgado


“Aqui tudo parece que era construção e já ruína”. Como tem sido intensamente atualizada essa frase da canção “Fora da ordem”, de Caetano Veloso, nesses tempos de Brasil.

Pouco menos de quinhentos dias de governo Bolsonaro e as tantas evidências de um projeto falido. Troca de mais de dez ministros, formação vergonhosa de um staff de néscios e personagens ruins, acirramento de todos os nossos abismos, silêncio sobre a Marielle, pronunciamentos desastrosos e confessionais de uma postura cada vez mais empedernida em sua queda. Bolsonaro faz valer a metáfora do canto do cisne, cujo som é entoado de forma mais vigorosa na hora em que o animal pressente a morte. Atentos, nossos ouvidos já conseguem delimitar bem a afinação desse último gesto: e ele é radical.

Bolsonaro articulou uma das campanhas mais violentas da história republicana, com direito a disparo de notícias falsas, alinhamento aos evangélicos e aos oportunistas do ódio, infantilização do eleitorado, subestimação da via democrática e acovardamento frente aos debates públicos. Ainda assim, cinquenta e sete milhões de votos. Uma eleição marcada por ascensões meteóricas de discursos odientos que permitiram a permeabilidade pública e ainda mais intensa de grupos de extermínios fardados, para não mencionar a ressaca de uma estratégia terrivelmente antidemocrática capitaneada por homens como Steve Bannon, que jogam regimes democráticos no lixo sob a justificativa de uma supremacia branca e a venda de bancos de dados.

Surpreende a legitimidade de seu discurso. Mesmo aos mais cínicos, que pensavam ser apenas bravatas eleitorais toda aquela metralhadora de recalques da campanha, hoje se surpreendem com um país refém de patacoadas internacionais, vergonhosas manchetes políticas e uma economia em franco naufrágio. Venceu o império do absurdo, venceu a ditadura dos iguais. Pois é sobre essa nociva premissa ontológica que se sustenta toda necropolítica bolsonarista.

Entende-se por necropolítica o uso do poder social e político para ditar como algumas pessoas podem viver e como algumas devem morrer. Trata-se de um Estado que empunha o gatilho, de permitir ao Estado sua mão canhestra. De condenar o isolamento social e desinformar 200 milhões de pessoas em nome de um cargo, já todo ensanguentado. Trata-se do “e daí, alguns vão morrer mesmo, o que eu posso fazer? ” como condolências presidenciais a mais de sete mil mortos em meio a uma pandemia inédita na humanidade. De sustentar um projeto de país sob ameaças de fuzilamento, golpes de Estado, articulando o calibre de uma arma, de forma metafórica, à urna e congelando os investimentos básicos. Trata-se apedrejar a memória de Marielle ao passo que se confessa e nos debocha em cadeia nacional.

E é exatamente a propósito disso que citei “a ditadura dos iguais” em que se sustenta essa necropolítica. Seu único objetivo, como um paranoico plano de governo (o intitulado “Gabinete do ódio”), é eliminar a diferença. Bolsonaro entende a legitimidade presidencial como uma continuidade de campanha, como se o Brasil após janeiro de 2019 tivesse se convertido em um país apenas de homens brancos, cristãos, heterossexuais, liberais e agressivos. No entanto, não é só um delírio de grandeza e legitimidade que o acomete, o Presidente tem também os seus fiéis aliados. E é nesse sentido que devemos pensar o amadurecimento desse processo.

Ilustração: Beatriz Cajé


Bem possível que a delação do Moro, a sonsa guinada da Globo e as agruras da pandemia abreviem o mandato do capitão. Por outro lado, como já venho falando há tempos, um fenômeno já está posto. E são esses cinquenta e sete milhões de eleitores que, arrependidos ou não, devem justiça à franqueza da campanha bolsonarista, e devem assumir que elegeram um projeto que abomina a diferença. A diferença de gênero, de classe, de cor, de credo. Bolsonaro concentra essas forças. A força do macho destronado, da mesquinharia burguesa.

Temos um longo percurso pela frente: para além do calvário suportado, da quarentena e suas imprevisibilidades, temos ainda a obrigação de uma reestruturação (vide essa porcentagem de votos) do ethos brasileiro. É essa a única possibilidade de uma não repetição histórica que, independentemente da maneira com que Bolsonaro acabe, impeça quaisquer de seus legados ou afiliados de ganhar legitimidade futura. É preciso convocar Jacques Derrida, filósofo argelino, às nossas aporias. É preciso compreender que a alteridade é sempre inacessível, e por isso, a diferença a nossa base relacional. A democracia é o equilíbrio fino entre tantas forças, lugares de fala, corpos, diferenças. A ética possível é a que admite e incorpora esse conceito, caro às inscrições de cada subjetividade e sustentado a um bem comum sensato em suas concessões e trocas. É preciso compor essa pluralidade com escuta, aludir a essa representatividade cívica como quem reconhece que o homem público assume a democracia nos mínimos exemplos, que devem reconhecer e garantir toda alteridade. É a única via possível. Uma via que antes de mais nada precisa reconhecer Bolsonaro como um sintoma incontornável para poder seguir. Ou, como se pudéssemos inventar um Caetano mais derridiano a nosso favor, assim o atualizaríamos:

“já que aqui é desconstrução, é preciso encarar toda ruína”.

Rio de Janeiro, 4 de maio de 2020.

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