por Flávio Morgado e Marco Antônio Vieira e Sá (autor convidado)
Supremo Tribunal Federal em Brasília. Fotografia: Rosinei Coutinho
Com a transferência da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808, importamos (ou incorporamos) seu aparato institucional, inflamos o nosso poder frente ao Império ao nos tornarmos Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, em 1815, e junto de carimbos e barões, também importamos vícios.
Com a vinda de todas as instituições administrativas de Lisboa para o Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal de Justiça, à época chamado de Relação, trouxe consigo uma camada de funcionários públicos privilegiados e portugueses. O que de cara, definia a diferença entre os que aqui nasciam e os funcionários da Corte, e que mais tarde geraria ainda mais tensões com a formação do Partido Português, formado a partir de colonos interessados em recolonizar o Brasil aos moldes de antes da fuga da Europa em 1807.
Com a nossa independência, e Pedro I obrigado a se aliar ao Partido Brasileiro, o agora oficial Supremo Tribunal de Justiça passa a ser integrado por barões e juristas ligados à corte imperial. Seu governo é marcado por escândalos, guerras, contradições e uma abdicação ao trono inédita. Durante o seu império, o Supremo garantiria a manutenção da escravidão e a concentração de terra, lema do Partido Brasileiro. É também o Tribunal que garante, na emergente figura do jurista Diogo Feijó, a criação da milícia armada e latifundiária que garantiria a nossa integridade territorial, a famosa Guarda Nacional.
Após a Proclamação da República, o agora Supremo Tribunal Federal, passa a ter uma nova composição e um novo regimento, enquadrado à divisão dos três poderes, mas sem perder os privilégios do cargo, e incumbidos de serem os mais graduados guardiões do regime, da Constituição.
Após completar 75 anos, um ministro é obrigado a se aposentar, e um novo é indicado pelo Presidente. É assim que as peças se movem. O projeto político que, em tese, melhor aparelhar o Tribunal, ou seja, que mais ministros ligados às suas pautas indicar, tem maiores chances de organizar a sociedade e as reformas constitucionais. Isso explica, por exemplo, a sanha por uma parcela da sociedade em relação à indicação de um ministro “terrivelmente evangélico” (acho curioso o uso do advérbio, para que não tenhamos dúvidas das propostas). Mas por outro lado, não se trata de uma leitura tão simplista, e a prova histórica disso foi o julgamento do Mensalão, a Lava Jato, o golpe na Dilma, o julgamento do Lula. Quatorze anos de possibilidades de indicação não garantiram ao PT qualquer lealdade. O protagonismo do Judiciário na crise política que se instaurou no país desde 2016, entregou um STF que se move ao seu bel prazer, expôs o jogo político desses servidores não eleitos, entregou as artimanhas oblíquas da toga, e em seu pior momento, foi motivo de revolta dos atos antidemocráticos promovidos pelo Bolsonarismo. É quase como se sua autonomia o colocasse em um lugar egoísta, e em um país cuja a República é o retrato do seu total não entendimento, o STF na berlinda nos gera uma série de questões.
Por isso, resolvi conversar com o amigo, talvez uma das pessoas mais inteligentes que conheço, o defensor público Marco Antônio Vieira e Sá, para debater sobre os limites e as vulnerabilidades do Supremo Tribunal Federal.
A Presidenta Dilma Rousseff e o Ministro Ricardo Lewandovsky. Fonte: Veja
FM – Para começar a nossa conversa: como pensar o Supremo Tribunal Federal enquanto fundamento jurídico republicano? E na medida do que é debatido nessa introdução, como pensar os elementos conservadores que o constituem?
MAVS - É interessante começarmos nossa conversa por aí, porque, se paramos para pensar, o Poder Judiciário, pela clássica concepção de separação de poderes, tem uma função tipicamente conservadora, porque contramajoritária. E isso mesmo quando toma decisões que podem ser tidas por progressistas. Quando o STF determina que o Estado reconheça o casamento igualitário, ou quando reage ao negacionismo do governo Bolsonaro durante a pandemia, é em nome da conservação de um determinado projeto republicano estabelecido, embora nunca concretizado, pela Constituição de 1988, em um contexto de redemocratização.
A própria forma como o STF é composto reforça essa posição, na medida em que são juízes indicados por governos anteriores controlando políticas propostas pelo governo em exercício.
Aliás, é quando exerce essa função contramajoritária que o Judiciário se legitima institucionalmente, e quando tenta justificar suas decisões em anseios populares segue por rumos perigosos. Afinal, não é um poder eleito, representativo, capaz, portanto de reivindicar algum tipo de legitimidade popular. Quando os ministros do STF ou outros juízes falam que estão respondendo à sociedade quando ignoram garantias constitucionais básicas em processos penais, como aconteceu por exemplo com a Lava-Jato, a verdade é que são anseios de uma determinada parcela da sociedade, em que os membros do Judiciário estão inseridos.
Em nossa República o Poder Judiciário sempre exerceu um papel de conservação do poder, de um poder colonial na origem e patrimonialista na essência, e por isso classista, racista e autoritário. As elites sempre souberam a importância de lotear o Judiciário, e vêm fazendo isso com bastante sucesso. Basta ver a dificuldade em se implementar o sistema de cotas nos órgãos do sistema de justiça, apesar da previsão legal. É urgente a democratização do acesso ao Poder Judiciário, às Defensorias Públicas, aos Ministérios Públicos, sob pena de seguirem exercendo um papel classista.
Aliás, quando você fala em STF e conservação de poder, isso me lembra o alerta que pusemos no programa do Movimento Direito Para Quem, coletivo em que me formei politicamente. Pensemos na clássica imagem da Queda da Bastilha. Todo processo revolucionário, inclusive a afirmação do capitalismo em contraposição ao feudalismo, tem como pauta primária a superação do sistema penal, e, portanto, do Poder Judiciário, do antigo regime.
FM – É possível prever como será o mandato de um ministro do supremo? Ultimamente, temos falado muito sobre isso, por conta da indicação de André Mendonça e a vinda do possível "ministro terrivelmente evangélico" que o bolsonarismo promete. Inclusive, a contagem de indicações é algo que cada vez mais tem sido analisada nas previsões políticas. É possível ler essas indicações apostando de fato nessa lealdade, e aí quais seriam os perigos desse aparelhamento? Ou, até mesmo como nos mostram os movimentos recentes do judiciário, é algo mais complexo essa movimentação política de um ministro do supremo?
MAVS - Chama mesmo a atenção a forma como a composição do STF, e suas decisões de um modo geral, tomou centralidade no debate público. O Judiciário sempre foi, como é razoável que seja, o mais discreto dos poderes. A partir da cobertura que é dada, por exemplo, ao julgamento do mensalão, depois com a lava-jato e o golpe contra a Dilma, o Poder Judiciário e o STF como seu órgão de cúpula passam ao centro dos holofotes. Até porque passam a ser uma arena central da disputa política. A PEC da Bengala, por exemplo, que aumentou para 75 anos a idade para aposentadoria compulsória dos ministros do STF, foi concebida já em contexto de golpe, para impedir que a Dilma nomeasse mais ministros ainda em seu mandato, que no fim das contas foi abreviado pelo impeachment.
Eu penso que a questão do aparelhamento do STF é mais complexa do que o Bolsonaro acredita, ou do que gostaria que fosse. É evidente que, ao indicar um ministro para o STF, qualquer presidente e sua assessoria vai buscar um determinado perfil, e estudar os alinhamentos e decisões dos candidatos. O escolhido ainda é submetido a escrutínio pelo Senado, em que suas posições costumam tomar o centro da discussão. O Bolsonaro, como de praxe, só escancara o teatro republicano ao afirmar expressamente sua intenção de aparelhar o Supremo. Acontece que ao sentar na cadeira, o indicado não pode ser tirado, em razão da vitaliciedade, então o presidente não tem nenhuma garantia de eventual lealdade.
A ascensão midiática do STF gera esse debate sobre o perfil individual do ministro, sua história, seus alinhamentos, mas o Supremo é um corpo burocrático extremamente complexo. Levantamentos apontam que o Supremo proferiu cerca de 111.000 decisões em 2019 e 99.000 decisões em 2020. Isso dá uma média de 10.000 decisões por Ministro por ano. É evidente o papel das assessorias, portanto, na medida em que se trata de trabalho irrealizável por apenas 11 indivíduos. É preciso termos em mente que o Poder Judiciário de modo geral, e o STF em particular, desde a nomeação de cada ministro até o proferimento de cada decisão, é uma arena política, um aparelho de hegemonia, que está em permanente disputa.
Jair Bolsonaro e André Mendonça, seu indicado ao STF. Fonte: Brasil 247
FM - Essa questão do golpe em cima da Dilma me parece um divisor de águas na maneira que lemos o judiciário até então. De um lado, parece que conseguimos vislumbrar que toda aquela "República dos concurseiros", ainda que mirasse em um primeiro momento a estabilidade do serviço público e os privilégios do judiciário, iria abrigar institucionalmente a mesma classe média que sai Moro, Dallagnol e sua gangue. Como pensar esse golpe do ponto de vista do judiciário, sobretudo no protagonismo de Sérgio Moro?
MAVS - É, todo golpe de estado é um processo complexo, e a captação do Judiciário é sempre uma necessidade para quem o promove. No caso do impeachment da Dilma ficou evidente a participação do Judiciário desde a organização do golpe, em especial através da Lava-Jato. O vazamento da chamada telefônica entre Lula e Dilma, a ilegal condução coercitiva do Lula, seu julgamento em tempo recorde para que não concorresse às eleições em 2018, nunca houve margem para dúvida quanto às intenções políticas de toda a operação. O curioso, e isso fala bastante sobre a nossa República, é que tenha sido necessário o acaso de um hacker em Araraquara descobrir um bug no Telegram para que a parcialidade fosse reconhecida. Ou alguém duvida que sem a Vaza-Jato o Lula muito provavelmente ainda estaria preso, certamente inelegível?
E, como de costume em nossa margem do mundo, esse processo de utilização do aparato jurídico para derrubar governos, o tal do lawfare, ocorreu de forma mais ou menos parecida em todo o continente. Este é um dos aspectos que menos se comenta sobre o golpe, embora dos mais relevantes, talvez por soar tão cliché. O jornal Le Monde publicou no ano passado uma reportagem bastante informativa sobre a participação americana na fraude judicial da Lava-Jato. A reportagem volta a 2007 para mostrar como os americanos estabeleceram uma diplomacia interventiva sobre a América Latina sob o manto do discurso de combate à corrupção. Essa política envolveu a formação de agentes do sistema de justiça sobre métodos investigativos de duvidosa constitucionalidade, além da pressão via OCDE para implementação dessa doutrina na legislação brasileira. A reportagem fala, inclusive, em reuniões secretas entre procuradores e investigadores americanos, em que se entregou sem cerimônias a um governo estrangeiro informações sobre a investigação, que envolviam questões sensíveis de interesse geopolítico e econômico do país.
A Lava-Jato só esqueceu de um princípio básico de direito penal econômico. Em investigações que envolvem grandes empresas, indústrias inteiras, é questão de responsabilidade que se vá atrás dos que operaram a corrupção evitando ao máximo quebrar a empresa, por toda a questão econômica. A forma irresponsável como operou a Lava-Jato, ignorando essa cautela, gerou perdas irreparáveis para a nossa indústria naval, petroquímica, de construção civil, faliu cidades inteiras, gerou desemprego.
Mas voltando à tua pergunta, em que medida a forma parcial como o Moro atuou prejudica o próprio Poder Judiciário? Como já conversamos, o Poder Judiciário, em comparação ao Legislativo e ao Executivo, parte de um déficit democrático decorrente do fato de que seus membros não são eleitos ou submetidos a escrutínio popular. E isso se justifica por seu papel contramajoritário, pela busca de uma irrealizável, mas importante imparcialidade. Quando um juiz se utiliza do aparato judicial e se joga de cabeça no jogo político-eleitoral, persegue um candidato, se faz ministro e depois presidenciável, é evidente que isso atenta contra a imagem do Poder Judiciário. O Moro é parte de todo o processo de degradação das instituições durante o ciclo bolsonarista, tendo abalado fortemente a confiança no Poder Judiciário, o que é perigosíssimo em qualquer democracia.
O promotor Deltan Dallagnol apresenta o seu convicto power point. Fonte: CNN Brasil
FM - E para gente fechar: quase todos os ataques antidemocráticos que ganharam força desde 2018 trazem o lema "Fim do STF". Isso me chama atenção, porque um dos sintomas mais claros da falência da nossa República, é o não entendimento do seu mecanismo, da sua representação, ou seja, não há uma cidadania consciente em relação a esse regime. O que explica o Bolsonarismo como o seu "filho feio". Esses ataques ao Supremo Tribunal aparecem em um falso pretexto de "liberdade" antes as amarras dos juízes. Derrubar esse último muro seria a nossa total falência republicana, e o bolsonarismo radical apela mais para esse movimento disruptivo do que pela tentativa democrática de aparelhamento do Tribunal. Nessa medida, fica uma questão: de um lado os jogos políticos que compõem a estratégia de conservação do tribunal e, por outro, a sua manutenção como garantia de uma integridade republicana. Como a sociedade deveria pensar esse dilema? O quão vulnerável de fato está o Tribunal?
MAVS - Essa é uma pergunta fundamental para o futuro do projeto de democracia desenhado em 1988. Feitas todas as críticas, inclusive à sua postura no golpe de 2016, eu entendo que o STF vem exercendo um papel relevante na contenção do projeto político autoritário do bolsonarismo. Isto fica evidente no próprio discurso do bolsonarismo, como você disse. Se o STF se tornou alvo preferencial é porque, quando provocado, tomou decisões, assumiu uma postura bastante firme, ainda mais se comparado, por exemplo, com o Legislativo.
O Bolsonaro nunca escondeu sua intenção, se ainda não interveio de forma direta no STF, é porque não teve correlação de forças para tanto. Não bastou um cabo e um soldado, felizmente. A questão é o quanto o tribunal resistirá aos impulsos autoritários contra si.
Os ciclos de golpes na América Latina variam conforme seus métodos. Da intervenção econômica à militar, passando pelo lawfare, o espectro é amplo. Em 2013, numa entrevista para o Página 12, o jurista Raul Zaffaroni, então ministro da suprema corte argentina, fez uma previsão que considero cada dia mais preocupante. O contexto era de greve das forças policiais argentinas contra a Cristina Kirchner. Segundo Zaffaroni, desde que se passou da ideologia da segurança nacional para a da segurança cidadã, com a autonomização das polícias e o avanço da guerra às drogas e da intervenção militar sobre os territórios, a força capaz de desestabilizar não são mais as forças armadas, mas as polícias. São um corpo com penetração social muito mais forte, ainda mais se pensarmos em uma sociedade tão milicianizada como a nossa. Esse é um fenômeno que não podemos ignorar, ainda mais depois do que aconteceu na Bolívia.
Minha esperança é que golpes de estado não são simples, dão trabalho, e trabalho nunca foi o forte do Bolsonaro e sua turma.
MARCO ANTONIO VIEIRA E SA é carioca, tijucano e botafoguense, formou-se em direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente exerce a função de defensor público no Rio Grande do Sul.
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