um conto de Julia de Souza
Talvez atraída pelo verde pantanoso do piso emborrachado que podia entrever pelas janelas amplas — um verde que lembra o tom de certas piscinas das propriedades aristocráticas à beira da ruína — o veado entrou no colégio, e o fez sem provocar qualquer alarde, uma vez que os estudantes já tinham retornado há alguns minutos às suas classes, onde assistiam as aulas do último período com um misto de cansaço e gozo iminente: as férias de inverno estavam prestes a começar.
O ingresso do animal se deu pela porta localizada no fim de um corredor pouco frequentado do térreo: uma espécie de dead end, já que as salas mais próximas estavam desativadas por conta de um defeito na calefação. A porta está na lateral do edifício, um pouco distante da rua que dá acesso à entrada principal. Não é raro que algum funcionário dos turnos vespertino ou noturno esqueça a porta destrancada: é ali, a um passo dela, num pedaço de gramado batido, que os faxineiros e vigias se revezam para fumar, fazer telefonemas ou simplesmente tomar ar fresco. Essa porta quase clandestina é, para eles, o implemento central de uma espécie de arranjo tácito: quem por ali entra ou sai é um dos nossos.
Trata-se, na realidade, de uma corça. Está na flor da idade e cumpre, como muitas fêmeas da sua espécie, uma vida desgarrada. De hábito, não é difícil encontrar alimento e refúgio nas bordas da cidade: a pequena comunidade local se orgulha dos bosques que se mantém relativamente preservados, ainda que já estejam sulcados por trilhas formadas pelos que lá se embrenham — os homens para praticar a caça amadora, os jovens para fumar erva ou dar uma trepada com sabor de barro e rebeldia.
Como se vê, a fêmea havia sobrevivido com uma facilidade surpreendente aos caçadores, que aliás não são poucos, ainda que muitos não abatam os animais (coelhos e lebres, raposas, veados, corças etc.) por prazer ou desafio: trata-se apenas da manutenção da vida silvestre. Esse misto de esporte e economia é, segundo alguns especialistas, inclusive benéfico a tais espécies; “um desafio, um treinamento”, diz um deles.
Nossa corça, provavelmente muito bem treinada, arriscou-se naquela tarde a explorar o além-mato. Começou com uma espécie de distração, um périplo gostoso pelas entranhas do bosque: acabara de comer mirtilos maduros e lhe caía bem a caminhada. Quando deu por si — se é que os quadrúpedes são dignos dos pronomes oblíquos — estava na margem da autoestrada, e a travessia ocorreu sem qualquer entrave.
A cidade estava mais esvaziada do que já é. Muitos haviam feito as compras de Natal com antecedência para otimizar o curto recesso de fim de ano.
Depois de caminhar pouco mais de uma milha pelo acostamento, a corça vê os primeiros afluentes da estrada principal: as ruas que dão acesso à cidade. Toma a segunda e, em pouquíssimos minutos, está diante do descampado que ladeia a escola municipal. A neve ainda não havia caído naquele início de inverno, e o gramado, contra todas as probabilidades, se mantinha farto.
Permitindo-se saltitar pelo terreno inabitado, com pequenas interrupções para abocanhar as folhas frescas da relva, a corça se aproxima do prédio. É perfeitamente retangular, branco dos pés ao topo, exceto pela moldura dos janelões metálicos, pintadas com um azul-escuro envernizado.
Não escuta um rumor sequer. Caminha rente às janelas frontais do térreo, que têm os vidros permanentemente fechados. Detém-se em uma delas: lá dentro, um professor jovem, porém calvo, se esforça para arrancar algum comentário de seus alunos pubescentes sobre o poema que acabara de ler em voz alta: “The Lamb”, de William Blake.
Little Lamb who made thee
Dost thou know who made thee
Gave thee life & bid thee feed.[1]
— foram esses os versos repetidos pelo professor, e jamais escutados pela corça.
Com ar de fastio, uma garota de blusão cinza e cabelos castanhos sustenta o queixo na palma da mão direita, o cotovelo apoiado na carteira. A voz morna e ritmada do professor têm efeito quase hipnótico, soporífero. Tentando resistir ao cochilo, gira o pescoço para a esquerda, sem abdicar do suporte da mão.
O que ela vê é o um dorso alongado e um rabicó peludo passando como um espectro. Reconhece a fisionomia, é a de um veado, como aqueles que arruínam o jardim de sua mãe de tempos em tempos, mas que ela raramente chega a ver de perto. Pensa se viu mesmo aquele dorso amarronzado ou se havia caído, por segundos, no caldo incerto do sono. Tem vontade de passar as mãos no pelo castanho do suposto animal, de descansar os ouvidos atolados de palavras. Levanta o braço, pede para ir ao banheiro. Virando os olhos, o professor assente.
A garota do blusão cinzento pisa o corredor e olha para os dois lados, certificando-se de que não havia nenhum bedel, nenhum aluno abrindo sorrateiramente o armário para recolher seus pertences e safar-se. Faz mais frio no corredor do que na sala, mas é bom. Menos morno.
Vai até a entrada principal, abre uma fresta do portão de madeira leve e depara com a escada de três degraus que conduz ao gramado. Entrevê o porteiro, que preenche bilhetes de loteria com um sorriso de canto. Não vê sinal do bicho. Dá meia-volta e, ao percorrer o corredor no sentido inverso ao de sua sala, um calafrio sopra por sua espinha. E então, lá estava: a corça, a veada. A veada que, depois de percorrer faceira os janelões frontais do colégio, passando incógnita pelo porteiro apostador, tinha virado a esquina e encontrado a porta lateral, a porta que só era lembrada por aqueles cuja tarefa, na escola, não é o treinamento, mas a manutenção.
Por um segundo a garota estranha o fato de existirem seres de quatro patas. Tão brutos, roçando a lama, e ao mesmo tempo tão mais firmes em sua estrutura. Quatro apoios!, como na aula de Educação Física.
A garota anda a passos moderados na direção do animal. Não há consenso, até onde ela saiba, no que diz respeito à animosidade dos cervos contra os humanos. Nunca ouvira relatos de alguém ser atacado por um deles. E aquele da qual se aproxima é uma fêmea, sequer tem chifres. Sabia, sim, que não são muito bem-vindos na cidade, sobretudo nas áreas residenciais, pois são capazes de desgraçar hortas e jardins num piscar de olhos. Um animal um tanto inútil, portanto: não serve para companhia e sua carne tem tanto valor quanto a de um boi. Ela sabe que seu pai já caçou veados, mas não se lembra de ouvi-lo falar disso com orgulho, festejo ou alarido. Já provou veado ou corça, é claro, mas sua carne nunca foi, ao menos em sua casa, servida como um troféu, como certificação de sua perícia. Para seu pai, celebrar a caça de uma corça seria um atentado à própria masculinidade, ainda que, secretamente, quando o tiro se confirmava certeiro, o prazer que sentia fosse incomparável — e dúbio, como todo prazer que se preze.
A verdade é que a garota nunca havia parado para pensar nisso: nesses mamíferos tão populosos e vulgares a ponto de tornarem-se invisíveis — ou assim os querem. Lembra-se num flash de ouvir um relato sobre os esquilos do Central Park: a amiga de uma amiga de sua mãe, sentada num banco sob as árvores, levou um susto quando um esquilo se estatelou no chão, bem na sua frente. O animalzinho agonizava: estava ferido, parecia sofrer, mas era valente. A mulher, consternada, perguntou ao desconhecido sentado na outra ponta do banco: “Será que o levamos ao pronto-socorro veterinário?”. O homem, sem esboçar qualquer sorriso, respondeu: “Fique à vontade”.
A poucos metros da corça, que dá passos hesitantes para frente e para trás, nossa garota estanca. Pode escutar a respiração débil do animal, e vê seu tórax inflar e ceder rapidamente. Mas está impassível, e afasta uma mecha de cabelo que atrapalha a vista para captar a totalidade daquele corpo. É mais baixo que o seu, mas também mais robusto. Repara na umidade do focinho preto e nas narinas avantajadas. Avança mais dois passos.
Só então sente o coração acelerar, não tanto pelo possível risco dessa aproximação, e sim pela aporia cognitiva que experimentava: por um momento quer afastar o animal de sua visão, mas não para enxotá-lo — quer movê-lo para o lado da mesma forma com que deslocou sua mecha de cabelo para trás da orelha. Seus pelos, os dela e os da corça, têm precisamente a mesma cor amadeirada.
A confusão dissolve alguma coisa no alto de sua cabeça. Olha finalmente os olhos da corça, os cílios fartos e a aparente ausência de pupilas: eram negros, negros por inteiro. A respiração das fêmeas está descompassada, garantindo-lhes ainda algum senso de diferença. Encarando a corça desde o alto, por um instante a menina aperta as mandíbulas, irritada com o ar desinteressado da oponente. Já não sentia sono.
Era tudo um superlativo: o amarelo açafroado das paredes, motivo de comentários desdenhosos do corpo discente, invertia a estação — estavam, menina e corça, flutuando sobre uma piscina funda e antiga, os olhares zerados, extasiadas com o bafo escaldante e ocre de um verão colossal. Era temporada.
Nota
[1] “Cordeirinho, quem te fez? Sabes quem é que te fez?/ Deu-te vida, deu-te pasto,/ Um riacho no campo vasto.” (trad. Sidnei Schneider).
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