por Rodrigo Lobo Damasceno (autor convidado)
Bertold Brecht
O CASACO DE BRECHT
De couro escuro, inviolável (porém gasto como todas as coisas
alegres e nada sagradas, matérias meramente humanas
elaboradas em oficinas de artesãos ou fábricas,
adoradas em elegias marxistas ou hollywoodianas,
coisas que se carrega nas maratonas olímpicas
das crises migratórias e humanitárias), o casaco
veste Brecht como um fetiche (nos bolsos, leva charutos Brasil –
originais de Irará – poemas e épicos socialistas)
e cobre a carcaça do poeta bávaro e dos outros expatriados;
são todos filhos órfãos de deuses velhos (gregos ou outra coisa,
pouco importa: todos os deuses envelheceram no século XX,
depois morreram em Treblinka), são todos irmãos de gente nova,
sem nacionalidades ou igrejas (alemães ou outra coisa,
pouco importa: o camarada na intempérie,
debaixo da cerejeira e do Reich,
é que é a pátria: a ela há que se dar o nome de coragem).
para Camila
tenho diante de mim
todas as horas que reservei para o amor;
da sacada
se vê por trás
da fumaça
uma cidade imensa – não somos beatniks
ou norte-americanos
e contudo amamos – amamos
mesmo
as noites
humilhantes, a vaia viva, as ressacas
ou teu rosto sombrio de um sábado no centro
(o gin não nos protege de monstro
nenhum –
mas há luzes nos postes
das cidades jovens
da América do Sul, o continente pobre,
católico
e estúpido
que construímos
juntos – e, lá de cima, desce
como névoa sobre um pátio do Harlem, o som
do bebop) – amamos sobretudo
as tardes e as tempestades
de carnaval, as noites abafadas de um verão
deste começo desastrado de século
sob o som de sambas
e samples – amamos
e é simples: porque na segunda, trabalhamos –
e os sexos progridem
a despeito dos dólares
e das promessas do euro; somos dois pontos pouco cotados
de luz e sombra em meio a tantos
que até Deus perdeu as contas
e já não anota nada
nas comandas: estamos livres,
por nossa conta (ariscos) –
e na segunda,
trabalhamos?
tenho diante de mim
todas as horas que teremos
pro amor.
NO SERTÃO, COM SENA (INTERNACIONAL)
Quero ser um touro que carregue consigo
as fronteiras do seu próprio território.
Minha pátria há-de ser a minha pata
que risca com os cascos as ruas do meu bairro –
pois que as outras (todas) são pais de filhos da puta
(e os proletários não têm pai: é gente
carregada de filhos, sem fortuna alguma,
camponeses e operários – e que ainda se inventam poetas
nestes tempos de filhos da puta).
E eu quero envelhecer livre, vermelho
(pois é esta a cor da liberdade na Palestina,
no Brasil, em Portugal ou na puta que o pariu),
livre, vermelho
comendo feijão tropeiro em Creta com o Minotauro,
pois este touro há-de compreender-me –
ele que não era grego ou filho de brasileiros,
não conheceu as fábricas nem as letras no agreste ou no Algarve –
olhando-me e sabendo que eu quero viver de bucho cheio,
livre, vermelho
longe do olhar dos deuses, dos pais e dos burgueses
Fotografia: Camila Hion
RODRIGO LOBO DAMASCENO (1985) nasceu em Feira de Santana, agreste baiano. Em 2020 publicou, pela Corsário Satã, o livro Casa do Norte. Prepara, para 2022, seu segundo volume de poemas, Limalha.