por Pollyana Quintella
E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.
João 8:32
Há um mês, no dia 19 de julho, Jair Bolsonaro encontrou apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília. Ele falava sobre o coronavírus, afirmando que “demos azar nessa pandemia, mas vamos sair dessa”. Como tem sido recorrente nas suas últimas aparições públicas, o presidente exibiu uma caixa de hidroxicloroquina aos presentes, mais uma vez reforçando sua postura anti-establishment inconsequente, ao se opor aos estudos científicos e às recomendações da OMS.
REPRODUÇÃO/FACEBOOK
Embora dialogasse com os apoiadores locais, o encontro de Bolsonaro também foi uma live transmitida em suas redes sociais, e produziu imagens que nos auxiliam a evidenciar algumas estratégias discursivas do presidente. Ao buscar uma leitura para elas, o que investigamos é a lacuna entre a forma de representação e o que é de fato representado, espaço no qual estética e política se encontram. Afinal, o que esses registros depõem sobre o real? O que suscitam de visibilidade?
Naquele domingo, os adoradores vestidos de verde e amarelo saudaram a cloroquina como saúdam um ícone religioso. Bolsonaro retirou a caixa de remédio do bolso e a exibiu como um troféu, rendendo gritos coletivos de “cloroquina, cloroquina!”. No Twitter, houve gente relacionando a imagem com uma cena de Rei Leão, em que o personagem Rafiki ergue Simba e o apresenta aos seus súditos. Sim, os gestos carregam consigo sentidos culturais compartilhados, e nos evocam memórias de origens múltiplas.
De fato, o mito da cloroquina só pode ter êxito se fundado no exercício do culto. A promessa em torno do remédio é a de que ele não vai curar os doentes, mas salvá-los como um verdadeiro milagre, uma manifestação divina que, portanto, está acima de qualquer discussão ou comprovação científica.
Mas além disso, há uma perversão presente na cena. Para que o ícone seja adorado, o líder, que naquela altura estava infectado com covid-19, exige que seus súditos se exponham ao risco da morte, aglomerados sem proteção. Ele demanda não só a fidelidade dos adoradores, mas a sua vulnerabilidade e a sua fraqueza. Com isso, o que a imagem nos revela é que a adoração da cloroquina traz consigo o culto da própria morte, é o sinal invertido que camufla o verdadeiro gozo do messias.
O sentido é ambíguo como a própria natureza das imagens: o que parece cura é condenação, o que soa vital é pulsão de morte. Sabemos que a ambiguidade é marca da política bolsonarista, ao recorrer frequentemente à trollagem e ao bullying. Quando aberrações são ditas em tom de zoeira, seus apoiadores as encarnam como verdade, enquanto os ofendidos por elas são rebatidos com a retórica de que era tudo uma brincadeira. A grosso modo, não há como contestar.
Junto a isso, a identidade verde e amarela do público, legado ufanista da ditadura militar, é a tática para sugerir que o que está em jogo é uma causa patriótica maior, acima das disputas entre partidos. Quando a bandeira nacional é tomada como símbolo da luta política, os opositores são vistos como inimigos do país. É o sentido explícito no lema do governo “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, espécie de remake de “Brasil: Ame-o ou Deixe-o”. Quem ousa discordar da nação?
Mas é preciso se perguntar por que Bolsonaro gosta tanto de imagens. Em tempos de engajamento digital, elas são um meio de comunicação mais rápido e direto que o texto, pois são transmitidas em tempo real e geram uma sensação maior de participação, sobetudo segundo a pretensão das lives. Ao nos sentirmos intimados a fotografar a experiência cotidiana para confirmá-la diariamente nas redes sociais, passamos também a confiar demais nesses registros, ao ponto de, por vezes, o real ser compreendido como o que é fotografável.
Ciente disso, Bolsonaro elege uma forma específica para se comunicar. Não se trata de qualquer pronunciamento, mas de um ritual discursivo que reafirma valores e símbolos compartilhados, cuja imagética se propaga. Quanto maiores as chances de suas imagens se tornarem memes, melhor. O viral é o que definirá a verdade.
Falamos, portanto, de uma nova cultura de participação. Embora os sujeitos presentes em Brasília sejam fundamentais para compor a cena, o mais importante é a performance que essa imagem alcançará no âmbito virtual, a despeito do encontro físico. Não se trata, como na comunicação política tradicional, de um núcleo central que difunde informações oficiais, mas uma verdadeira rede de compartilhamento que leva as imagens adiante em velocidade exponencial.
Para garantir a viralização, é preciso disputar a atenção nas redes. Com milhares de informações oferecidas a nós a todo momento, o que nos detém é aquilo que nos surpreende. Por isso tais imagens compõem aquilo que chamamos de uma estética bolsonarista: para produzir conteúdo viral, Bolsonaro e sua cúpula permanecem em constante estado de performance. É o modo pelo qual seduzem a nossa curiosidade e permanecem em pauta.
Vejamos uma outra fotografia feita quatro dias depois, em 23 de julho. O presidente foi visto exibindo a caixa de cloroquina para as emas que vivem no Palácio da Alvorada, e foi flagrado por fotógrafos que cobriam o local, rendendo manchete, piada e zombaria.
Nesse caso, a partir de uma situação inusitada e irônica, Bolsonaro zomba não apenas dos fotógrafos, mas dos seus críticos em relação ao uso do remédio. É como se ridicularizasse a si próprio para neutralizar a crítica, dizendo “Vejam como sou idiota, estou posando pra vocês!”.
Não temos como não concordar com ele, e a partir da imagem produzimos milhares de memes — os mais conhecidos foram os que atribuíram à ema desinteressa o clássico A Revolução dos Bichos, de George Orwell, publicado em 1945. Parecemos certos, mas ele tampouco sai perdendo. Tem êxito em nos capturar em sua armadilha besta, fazendo da oposição seu público fiel. Enquanto usamos a imagem para reafirmar a sua insensatez, seus apoiadores acham graça. Num caso pitoresco como esse, não há nada senão o político performático. É tudo verdade. É tudo brincadeira.
Reprodução: REUTERS/Adriano Machado
Embora seja uma cena orquestrada para o clique de fotógrafos profissionais, quando o assunto é dialogar com os seus seguidores o presidente gosta mesmo é de publicar fotos de baixa qualidade que apresentam traços da vida comum, com signos precários e desleixados. Nesse caso, são estratégias que constroem credibilidade via espontaneidade. Ao recusar o estúdio ou a propaganda televisiva, ele reivindica uma independência para suas imagens, livres das manipulações do “sistema” e de qualquer mediação.
Nesse post de 25 de julho feito no Instagram, a legenda informa que Bolsonaro está finalmente curado do vírus, enquanto a imagem apresenta uma mesa de café da manhã bastante caseira, em local simples. Ao inserir o remédio dentro da cena comum, é como se o presidente tentasse nos convencer de que a suposta naturalidade do clique é o atestado da sua não manipulação, espécie de avesso das fake news. Seu real tão real é a testemunha inquestionável do sucesso do remédio. O resto é intriga da oposição.
Reprodução / INSTAGRAM
Entre o culto religioso e a ênfase no caráter despretensioso das "coisas simples", creio que a profusão de imagens do presidente nos ajudam a ler o presente e suas complexidades. A política de Bolsonaro é uma questão de fé e adoração ambíguas, coisa típica dos populismos autoritários. Sua grandeza e milagre estão acima de qualquer vacina. Não à toa identificamos um traço de "cegueira" nos bolsominios: não há reflexão, conversa ou acordo possível, a manipulação via medo e ódio fabrica uma espécie de verdade divina.
Isso porque se as imagens virais correm rápido e alcançam multidões inéditas, elas tendem a estar assentadas em clichês, e não costumam produzir qualquer discussão mais aprofundada de ideias. Federico Finchelstein, estudioso argentino dos regimes autoritários recentes ao redor do mundo, diz que os fascistas chegam ao poder espalhando mentiras ideológicas até se tornarem verdades incontestáveis. No caso brasileiro, isso só é possível com muito investimento estético.
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