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Foto do escritora palavra solta

Um selvagem de meias

por Italo Diblasi



Roubar Rimbaud é fácil


Viver de areia só quem sabe




O poeta Guilherme Zarvos. Reprodução: Instagram




1.

Naquela época eu entendia ainda menos do que hoje sobre as artes visuais no Brasil. O ano é 2014 e a convite da Pollyana (Quintella) vou ao Parque Lage, no Rio de Janeiro, para o lançamento de um livro sobre Mário Pedrosa, no Salão Nobre da EAV. Lembro de abrir uma garrafa de vinho dentro do ônibus, a caminho do Jardim Botânico, e da camisa cinza que não tenho mais. Lembro de descer quatro quadras antes e seguir andando, graças a um engarrafamento, e de outras pessoas fazendo o mesmo. Lembro das luzes do prédio da EAV ao longe, de gargalhadas abafadas e de ficar subitamente nervoso. Da maior parte do restante da noite, lembro apenas flashes, o que não é necessariamente ruim.

A ocasião (depois fui entender) era um pouco especial porque haveria uma conversa sobre o novo livro entre o Antonio Manuel e alguém que já não me recordo. O lugar estava cheio e nós, atrasados. Nas escadaria do prédio um homem falava alto, sentado e rodeado de três ou quatro jovens que eu não conhecia, mas a Pollyana sim. O homem usava uma camisa de flanela (que até o fim da noite estaria aberta até o umbigo), cabelos longos grisalhos e uma meia de cada cor. Apoiado no degrau, tinha, em uma das mãos, uma garrafa de cerveja, e na outra, uma de água com gás. Era o poeta Guilherme Zarvos. Fomos apresentados e decidi sentar para fumar um cigarro e conversar um pouco. Acabei fumando oito e terminando a garrafa de vinho ali mesmo. Não cheguei a sequer pisar no Salão Nobre.

Naquela noite ouvi mais do que falei. Ouvi sobre Stendhal, Balzac e Baudelaire. Sobre Drummond, a ditadura militar e Jango. Sobre Darcy, os CIEPs e o babaca do Marcelo Alencar. Ouvi sobre a poesia, estômago e vômito. Sobre talento e trabalho. Não me recordo bem do que falei. Tomei uma aula e um porre. Experimentei aquilo que na falta de uma definição melhor vou chamar de êxtase. O êxtase de conhecer Guilherme Zarvos. Lembro de seguir, já terminado o lançamento, para um bar, com pessoas que fui conhecendo no caminho mesmo. Desta parte da noite, sim, lembro menos ainda. Não me recordo sequer a hora em que fomos embora, mas lembro de ganhar um exemplar de Lições Educacionais para Tintum, livro do Zarvos que havia sido publicado dois anos antes, e de folheá-lo no ponto de ônibus. Lembro de olhar tudo um pouco atônito e de não entender muita coisa. Não sabia, ainda, que estava diante de uma nova linguagem, de uma outra linguagem, que me abriria um horizonte sem fim. Não sabia, ainda, que de certa forma, tudo já tinha mudado.

2.

Nos anos que se seguiram àquela noite fui conhecendo, pouco a pouco, a obra de Guilherme Zarvos, de maneira tão aleatória quanto perfeita. O segundo livro que caiu em minhas mãos foi o Morrer, de 2002, seu livro vermelho – uma narrativa composta majoritariamente em prosa poética, uma poesia densa, para não dizer pesada. Ainda assim, era vida o que pulsava das páginas e só então creio ter entendido seu título, já que é propriedade da vida a morte, e que saber viver equivale, inevitavelmente, a saber morrer. E se recorro ao clichê fundante desta ideia é porque só a vida interessa à poesia de um Zarvos, mas não qualquer uma. No fundo, o que comecei a encontrar ali – e que viria a encontrar em toda sua obra – era a recusa do banal, a vida como movimento extremo, o que requer fôlego. "Escrever uma nova poesia é como abrir o peito/ hoje nadei 2.000 metros". Imaginei, então, Guilherme Zarvos como uma locomotiva em transe, consumindo os trilhos pelo caminho, assinalando a impossibilidade de retorno, tentando respirar. O percurso como movimento perfeito e desastroso, registrado na pincelada bruta de quem não teme a viagem. "O que mais pode me acontecer/ Morrer? Já nem sei o que é isto. Estou tão próximo/ Da morte que ela já nem existe. Estou dentro do/ Enlace da morte. Eu quero é que se foda. Desculpem-me./ Envelheço com dignidade".

O livro seguinte foi o Zombar, publicado dois anos depois, e que creio formar um estranho par com seu antecessor, já que, superada a ideia da morte, somente a Zomba interessa. E é propriamente ela que vemos se desenhar nesse livro, que também mescla narrativa em prosa com poemas em versos. Narrativa que se revela a um só tempo delirante e afiada, dando contornos políticos ao movimento de Zombar. No fundo, é a locomotiva que gargalha ao fim da linha, denunciando a pequenez de nossa vida tacanha, de um Brasil que se afasta do sonho rumo ao nada. E é também um movimento de cantar a gente daquele Brasil (seu "Povo Novo" – anunciado no livro de 1995 e que compõe toda sua obra –) que vai resistindo a que custo, protagonizando um porvir estilhaçado. E é também no próprio Zarvos, enquanto sujeito enunciativo, que este Povo Novo faz morada, como no inesquecível poema “Pivetes”, em que vemos a delícia e a política fundidas num amanhecer embriagado, clamando por inteligência. Passo, então, no arco caótico do Zombar ao Ensaio de Povo Novo, escrito nove anos antes, a pensar não somente no poeta, mas no cientista social que foi buscar na antropologia de Darcy Ribeiro sua utopia, a única em que acredito, cada dia mais.

3.

Curiosamente, o próximo passo deste passeio nos leva a um outro aspecto de sua poesia, que creio estar mais latente no Mais Tragédia Burguesa, publicado em 1998 (e meu favorito), que poderíamos definir com um livro freejazz e o mais lírico deles. No Mais Tragédia temos uma abordagem contemplativo-furiosa da existência, que se abre como uma lótus através das séries de poemas, espalhadas ao longo do livro, e que vão guiando o farto conjunto temático que engloba o bambuzal e Miles Davis; o amor erótico e o édipo da infância. A linguagem de Zarvos é, nesse livro, mais circular e redonda do que em qualquer outro, e não há espaço para ironia: até mesmo o título é literal, ainda que não pareça à primeira vista. No Mais tragédia burguesa a paixão é menos transtornada, e a natureza ganha certo protagonismo, coisa que vai se consolidar quase duas décadas depois, com seu 60-70 70-60, constituindo mais um eixo de linguagem dentro de sua obra. "O bambuzal abre e fecha como um guarda-sol oriental/ Como cílios naturalmente longos e sem rímel/ O bambuzal guarda serpentes a seu serviço". O poeta lírico-rebelde que, depois fui perceber, já começava a aparecer, como faíscas, em seus dois primeiros livros, os pouco conhecidos Beijo na Poeira e Nacos de Carne, narrativas em prosa beat-tupiniquim distante dos escritores brasileiros do período, mais próximos de uma certa literatura que vem sendo feita agora, nos últimos anos. Aliás, não seria exagero afirmar, ao repassar sua obra, que a escrita de Guilherme Zarvos vai se tornando mais contemporânea à medida em que o século 21 vai avançando, e com ele as questões que permeiam o Brasil e o mundo, fato que talvez explique o crescente interesse por seus escritos, sobretudo entre os mais jovens.

4.

Há, ainda, uma virada (melhor seria dizer revolução) decisiva em sua poesia, marcada por um afastamento do elemento discursivo em direção a uma linguagem "cifrada", imagética. Isto começa a se desenhar antes, mas se consolida a partir de dois livros: Lições Educacionais para Tintum (que à primeira vista havia me parecido difícil) e, principalmente, O olho do Lince, publicado em 2015. Livros lisérgicos, que se aproximam daquilo que o próprio poeta definiria como "escrita mágica". Quanto a ela, o meu primeiro erro foi ter buscado uma leitura simbólica dos poemas, para depois entender que o símbolo era, antes, uma síntese. Com esta fase, que acompanha sua escrita até hoje, Zarvos rompe uma certa primazia da palavra constituída e busca desmembrá-la, reconstituindo-a na imagem (que é, ainda, palavra). Aproxima-se, assim, das artes visuais, mais do que em qualquer outro momento de sua poesia. Isso se opera não apenas na forma, mas também nas cores como elemento compositivo da poética. Daí o aspecto lisérgico que parece definir esta escrita, e que entendo como instrumento daquilo que ele definiu como "mágico". Trata-se de uma virada decisiva de linguagem, ainda pouco compreendida enquanto tal, porque implosiva. Escrita para o século 22. Para as cavernas futuristas.

5.

Reproduzo, na íntegra, este poema de Marcelo Reis de Mello intitulado Guilherme Zarvos, publicado em seu livro mais recente, e escrito em homenagem ao poeta:

há ou havia um crime que já não se diz, talvez lírico demais – flor ou projétil:

patas no peito – o som do tambor: roleta russa em têmporas

à beira sabe-se lá do quê, no limite de um choque

anafilático, um blecaute psicótico um coma alcoólico num puteiro de Copacabana

(em que o atendente finge não dar o rabo e ainda rouba a senha do cartão de crédito)

havia ou há um criminoso sempre nascendo as mãos nos bolsos da frente de algum rapaz imberbe e teso apesar do pó de má qualidade

com sangue debaixo das unhas uma flor obscura na garganta um nó à altura do intestino grosso à beira

do mar às 4 da manhã ou às 2 da tarde quando já não é mais possível

esconder as olheiras de quem rala apenas entre coisas cruciais ao bom funcionamento

do mundo há ou não há um crime nos seus dentes há ou não há sangue saliva manchas

de macho nas suas mãos cortadas você que se entregou ao crime você que matou o banqueiro

com os lábios envenenados de paixão sincera que deslocou o púbis com um golpe de karatê na porta de um pub

que agora mais estranho troncho esquizoide que nunca beija de língua a cadelinha Edith canta ao peru aos patos

uma ópera alucinada sob o sol cianótico da chácara de Maricá há ou haverá sempre alguém

querendo enterrar-te vivo num charco mais raso que um perdigoto mas não – teu nome

sabe ser tão tão tão que não cabe dizer um Z, você

o intragável gentil um selvagem de meias o único hippie com raízes xamã e grego

desagregado – um zarvoleta puto ou pacífico você com suas camisas quadriculadas de flanela

e jeans de florista homicida ajoelhando-se sobre as rosas do povo (copos-de-leite)

que seus joelhos ralados são os de quem dá de cabo a rabo alguma coisa para deixar na terra

uma gota um fluido: o peso que baste para fazer nascer na violenta cerração

em que nos encontramos algum delito algum amor.

6.

É preciso, ainda, abordar um ponto importante da obra de Guilherme Zarvos, um pouco distante dos outros livros, mas nem tão distante assim. Propositadamente destoante, como se constituísse a outra face de uma mesma moeda: a vivência e seu registro. Trata-se do Branco sobre Branco, livro que foi sua tese de doutoramento no Programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-RJ, que tem como mote o CEP 20.000, evento de poesia falada, que criou com Chacal, no Rio de Janeiro, mas que acaba por se revelar um livro sobre algo mais amplo: as várias formas possíveis (e impossíveis!) de agenciamento no âmbito da cultura em uma cidade sitiada por suas próprias estruturas. Escrito através de narrativas que correm paralelas, juntando sua própria escrita àquela de dezenas de pessoas que constituem o livro. Múltiplas vozes em torno de uma ideia operada por recorte e colagem, bricolagem no sentido menos estruturalista possível. Aqui, Zarvos faz de si mesmo laboratório, recuperando a vida que desemboca no sujeito que escreve, recompõe, o cenário de nosso desterro alegre. Em última instância, Branco sobre Branco parece ser o testemunho de uma singularidade – este poeta, nestas condições – fruto e diapasão do cenário construído página a página, nas palavras de um coletivo. Creio firmemente que este grande ensaio alucinado (sua tese) seja, antes de tudo, um longo poema cantado por um coro de mênades e sirenas, faunos e legisladores. A Politéia que nunca foi. Nunca compreendi com precisão o conceito de rizoma, mas se tivesse compreendido, diria se tratar daquilo ali.

7.

Sei que a questão é um falso problema, mas não consigo evitar pensar no que significa ser poeta hoje. E quando digo de um falso problema é porque sei também que não há fórmulas, cartilhas e modelos que possam dar conta de algo assim, e que se pudesse, tudo seria muito mais pobre. Estamos cansados das definições, que no mais das vezes são forjadas por elementos discursivos de poder. "Todos os dias um poeta se vai/ Outro se lança". Mas tergiverso, infelizmente. Que significa ser poeta hoje? Será melhor não perguntar?

8.

Se eu morrer amanhã que se salve a poesia ou que me salve a poesia e não estarei morto amanhã. Minha voz e as letras – como é preciso o encaixe das palavras – que dão sentido e, na busca, o encontro do que é estético ético do que é sintonia. Não vaguei neste mundo besta à toa, se bem que é bom vadiar. Vadiei. Se na volta da mesa toalha de cânhamo e vaso deixei vagar pensamentos e cheiro e sabor: como gosto de você. E procurei ajudar outros vadios, em precisão maior que a minha, pois há retorno na camaradagem. Sou de um grupo de semente vândala, de esparramante coração. Assumido vagabundo. Sinto falta de você. E lá se vão anos e gente de todas as vidas. Vi venderem a peso de ouro copeques sem valor. Fui passado para trás com um sorriso vago. Era vantagem. Vendo o sorriso vago de quem vendia. Não sou vítima. E cada disso com sentido: eu amo ser humano que se aventura... Contudo vem agora canseira do vago, ventríloquos, vociferação. Já sinto sono no meio da volta. Este teatro eu vi ontem. E não que valha apenas o versado. Mas vai chegando a velhice e devagar cedo ao vigor do vento. Continuo amando o que é verde... ver-te vou indo ver. (Guilherme Zarvos, Verde, Mais tragédia burguesa, 1998).

9.

Não pares nunca, meu querido Capitão Loucura!

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