por Maria Cabianca
“L'une chante, l'autre pas”, Agnès Varda, 1977
I.
1962. O retrato de uma mulher exposto numa galeria fotográfica em Paris aproxima duas amigas distantes.
Pauline (Valérie Mairesse) e Suzanne (Thérèse Liotard) eram vizinhas na Rue de Maine. Pauline morava com os pais em uma confortável casa de classe média e Suzanne com o tio sapateiro. Quando esta muda abruptamente de endereço, perdem contato. “Ela começou cedo”, sentencia a mãe de Pauline, referindo-se a gravidez da amiga adolescente da filha.
O fotógrafo Jérôme, atual companheiro de Suzanne, passa seu endereço para Pauline – que reencontra a amiga de 22 anos (mas que, para ela, parece ter 30), agora mãe de dois filhos e gestando o terceiro. Pauline tem então 17 anos, é aluna do ensino médio e sonha em ser cantora. Suzanne ainda não contou a Jérôme sobre a gravidez e sofre pela sobrecarga da maternidade – não há vaga nas creches –, pela falta de perspectivas financeiras – não há trabalho – e pela gravidez indesejada – não há controle reprodutivo sobre seu próprio corpo.
Ao ver o desespero da amiga mais velha, Pauline começa a perguntar para suas conhecidas onde fazer um aborto. Descobre o endereço de uma clínica clandestina que cobra pouco, mas usa um processo perigoso. O ideal, lhe dizem, seria viajar até algum país vizinho, a Holanda, ou Suíça – onde o procedimento custaria cerca de 20 mil francos.
Para custear o aborto de Suzanne, Pauline mente aos pais: diz que precisa desse dinheiro para uma excursão escolar. Seu plano é revelado. Ela sai de casa, uma grande tragédia acontece e, com ela, um novo afastamento entre as amigas.
Um novo reencontro levaria 10 anos, e seria justamente numa manifestação em apoio a uma garota que estava sendo processada pelo Estado francês por ter feito um aborto. Suas vidas mudaram completamente: Suzanne mora com os pais no interior, sendo constantemente humilhada por ter tido filhos fora do casamento, e Pauline agora conhecida como Pomme, tornou-se cantora e militante feminista. Pomme narra à amiga uma viagem recente que fez com um grupo grande de mulheres, partindo de ônibus de Paris até Amsterdã, para viabilizar abortos seguros. O ano era 1972 e o aborto só seria legalizado na França em 75.
Além da alegria do reencontro, as duas estão imersas em um clima de euforia política onde há organização coletiva pautando os interesses de uma classe; neste caso, a classe sexual das mulheres. Ali, fazem a promessa de não perderem mais contato e a cumprem.
“L'une chante, l'autre pas”, Agnès Varda, 1977
II.
O filme foi uma das inspirações que levou a roteirista Juliana Reis a idealizar o Milhas pela Vida das Mulheres,[1] uma ação direta que acolhe e orienta mulheres brasileiras que optam por abortar. Somente nos dados oficiais do Ministério da Saúde, estima-se que 1.700 mulheres morreram em decorrência de complicações de abortos inseguros desde 2019, ano de criação do Milhas.[2]
Certamente o número real de óbitos é muito maior, demonstrando que a criminalização do procedimento, tantas vezes arvorada em uma suposta “defesa da vida”, tem seu debate nublado por concepções morais e filosóficas quando deveria ser entendido por aquilo que as estatísticas apontam: um tema urgente de saúde pública.
Eis um verniz humano dificilmente aceito pelos fundamentalistas religiosos: abortar não é nenhum prazer e nenhuma mulher deseja de antemão passar por isso. Eis outro fato que eles parecem fazer questão de esquecer: métodos contraceptivos falham. Diante de uma gravidez, seja ela desejada ou indesejada, tudo o que nós queremos e precisamos é de acolhimento, informações, segurança e autonomia.
Para então podermos tomar a decisão de seguir ou não com aquela gravidez e, em caso negativo, como permanecermos vivas. E, em um país como o nosso, como permanecer viva e não ser criminalizada por ousar decidir sobre os rumos de nossa próprias existência.
Assim como no longa, em que Pauline viaja de Paris a Amsterdã com um grupo de mulheres que iria buscar além de suas fronteiras uma maneira segura de fazer o procedimento, o Milhas arrecada milhas aéreas e doações para custear viagens de mulheres em situação de vulnerabilidade social – as principais afetadas pela criminalização do aborto – a países vizinhos quando seus casos não se enquadram nos pré-requisitos nacionais (anencefalia, estupro ou risco de vida à gestante).
Mais de 200 mulheres brasileiras já fizeram valer sua vontade de forma legal e segura graças à ação do grupo, sempre que possível no Brasil, e quando não, no México, Colômbia e mais recentemente Argentina.
III.
Aos quinze anos, descobri a Nouvelle vague e me apaixonei. Acostumada a ver clássicos que passavam inteiramente em estúdios, cujos roteiros muitas vezes eram adaptações de peças, encontrei no movimento um frescor que dizia que outras formas de fazer cinema eram possíveis, com suas narrativas menos moralistas e menos comprometidas em fazer uma mimese das artes que já foram utilizadas para pensar e justificar o cinema enquanto expressão artística, a saber, a fotografia, o teatro e a literatura.
Até hoje, com quase o dobro da idade e menos impressionável, ainda faço dessa produção meu refúgio cinéfilo particular. Como quase todos, mergulhei nessa corrente de mãos dadas com a duplinha Jean-Luc Godard e François Truffaut. Esgotei boa parte de suas filmografias antes de conhecer aquela que costumava figurar nos guias de cinema com ares de nota de rodapé: a imensa Agnès Varda.
A realizadora belga, que viveu praticamente a vida inteira na França, é a única mulher associada a Nouvelle vague. Fazia parte da chamada “margem esquerda” do grupo, também integrada por Chris Marker e Alain Resnais. Diferente da margem direita, os filmes deste grupo costumam abordar temáticas que atravessavam o mundo, e não só a França, e os sentimentos que eles suscitam nos personagens. Ao longo de sua filmografia, incrementada até o final da vida, ela foi muito além da Nouvelle Vague e conseguiu imprimir em seus filmes um estilo próprio, marcado por uma generosidade no olhar para com aquelas e aqueles que escolheu narrar.
O reconhecimento tardio veio aos 90 anos, precisamente um ano antes de sua morte (2019). Foi indicada ao Oscar de Melhor Documentário pelo excelente “Visages, villages”, além de ter estampado a capa da edição de Junho de 2018 da Cahiers du Cinéma – a mesma de onde saíram Godard, Truffaut e os demais “jovens turcos”. 2018 foi um ano decisivo para que ela viesse a ser conhecida também fora dos círculos cinéfilos.
Edição de Junho de 2018 da Cahiers du Cinéma que homenageou Varda.
Olhando em retrospectiva, foram necessários mais de 40 curtas e longas, a iminência de um centenário e demandas pós-modernas por representatividade para que uma mulher europeia branca fosse considerada da mesma envergadura de seus pares masculinos.
Dos limites da concessão: a crítica especializada demora-se sobre os aspectos formais de sua filmografia e relega ao ativismo feminista explícito de algumas de suas obras, como o de “Uma canta, a outra não” (L’une chante, l’autre pas, 1977), ares de melodrama e excentricidade perdoável, sem dimensionar a persistência e atualidade das questões levantadas pela diretora.
Varda adentrou o mundo do cinema como uma forasteira: com um olhar primeiramente formado pela história da arte, o teatro e fotografia, até os anos 50 ela havia visto menos de cinco filmes. Talvez aí resida a sua diferença fundamental em relação aos outros cineastas que emergiram na Nouvelle Vague pois, além de outro corpo, ela parece trazer um olhar não achatado pelos ditames da forma. Muitos de seus planos, por maior fruição estética que permitam, não encerram-se em si: eles têm algo mais a dizer sobre o mundo que o produz e suas urgências. O cinema que ousa ir além de belas paletas de cores e do virtuosismo técnico costuma fugir à compreensão dos mais afoitos a categorizações.
E é nesse hibridismo que “Uma canta, outra não” constitui-se. Um drama feminista, um musical, um panfleto, o retrato de uma época em que o movimento feminista ainda não havia sido tão duramente desmontado pelo neoliberalismo como nos dias atuais, onde dizia-se “nós” e não “eu”. O filme é tudo isso e comunica diretamente aos anseios das mulheres dos dias de hoje.
IV.
Os limites da política institucional e da representatividade cultural como ferramentas de emancipação feminina estão nítidos. Nos partidos de esquerda do Brasil 2021, somos expulsas por questionar hegemonias e tentar pautar direitos das mulheres e das crianças. Ter nossos dramas representados só comunica a nós mesmas, que experimentamos diariamente o desprivilégio de possuir um corpo fêmea em uma sociedade que nos relega abusos, interditos, explorações de todo o tipo.
O tipo de ação direta articulada por Juliana Reis no Milhas pela Vida das Mulheres é o indício de um caminho que, na conjuntura atual, parece-me o mais seguro para construir alianças entre mulheres em prol de objetivos em comum.
Considerar fazer ou não um aborto não é pré-requisito para somar na luta pelo direito de todas a autonomia reprodutiva, uma vez reconhecido o princípio fundamental de não impor a ninguém uma métrica pessoal do bem viver. Acima de tudo, queremos viver.
Assista ao filme em: http://abre.ai/cineplongee
Notas
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