por Júlia Gonçalves
Tarot de Marselha, edição de Pierre Madenié - 1709
O tarô é um dos tantos meios que nos ajudam a enxergar melhor o que a nossa consciência não vê. Dentre as expressões do inconsciente, temos a intuição e o instinto. Jung diz que o instinto é um comportamento inato e característico de um coletivo, enquanto a intuição é a percepção do inconsciente. Amamentar é instinto, saber que seu bebê chora de fome é intuição. Jung diz também que a intuição é um receptáculo de memórias perdidas, o suco disso são os nossos sonhos. É ela que nos ajuda a tomar decisões mais honestas com as nossas necessidades e com a nossa personalidade. Encontrar o fio da intuição e segui-lo exige fechar as janelas e tatear no escuro. A Lua não emite luz própria, mas reflete a luz do sol. Receptiva, absorve as gotas que o sol exala, produz dali outra coisa.
O arcano 18 conversa com o arcano 9, de quem falei no ultimo texto desta mesma coluna. Não só pela numerologia (1 + 8 = 9) - visto que a numerologia nunca é “só” no estudo dos oráculos. A Lua mora entre a visão da Estrela (arcano 17) e a realização do Sol (arcano 19). O caminho do arcano 18 na Árvore da Vida conecta a esfera da emoção e dos instintos Netzach à materialização da vida, à base da árvore, Malkuth. Transforma Vênus em sangue: a menstruação. Fala do útero, esse receptáculo mágico que também temos dentro de nós, o portal da vida. Quando somos gerados ainda não temos consciência própria, respiramos no corpo de outra, em sono profundo. Ali nos desenvolvemos até ficarmos prontos pra luz. A lua é gestação - da idéia, de percepções, de vida.
Toda carta tem luz e sombra e a sombra da Lua é sair da caverna de Platão e se recusar a voltar pra contar aos outros. Lua-Diana-Hécate são a porta do Céu e também do Submundo. As realidades são muitas, mas se apegar a uma narrativa interna e negar o que é material, o que podemos tocar, ilude. A lua nos avisa pra atentar ao que não é obvio, o que não está as claras, o que precisa de um semicerrar de olhos pra ver. É o nosso farol invisível que quer que atravessemos a nebulosa pra encontrar um cais. Pesca no inconsciente das águas, no fundo do mar, o peixe, o próspero. A carta também rege o caminho de Peixes na Árvore, signo do sonho. Você tem sonhado mais na quarentena? Nunca vi tanta gente escrevendo os sonhos como agora. O carangueijo sai da água de frente e se andar pra trás se perde no inconsciente.
Nise da Silveira descobriu com seus clientes, os pacientes do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, que trazer à tona as imagens do inconsciente é a forma mais humana de trabalhar a loucura e deu ao psiquiatra o dever de decifra-las, harmonizar o cão (domesticado) e o lobo (selvagem) que miram a Lua. O terapeuta agora é ponte entre as imagens que emergem desses processos intra-psíquicos e o estado emocional dos pacientes. Nise explora a arqueologia da psique usando de mitologia, estudo de cores, simbolismos e tantos outras respostas imagéticas que construíram o chamado inconsciente coletivo de Jung. Segundo Jung, o taro também é um dos ganchos pra acessar esse inconsciente coletivo, e por isso funciona e nos dá respostas. Nise nos conta que cada um dito louco é um artista com fome de beleza, sede de ir além, nos mostra a riqueza subjetiva desse oceano que carregamos dentro da gente, muitas vezes turbulento.
A lua cheia é a lua vista pela luz do sol, então seria a lua nova a verdadeira face da lua? A lua escura e sombria, desconhecida, Lilith, a lua das deusas bruxas. Isso infelizmente é interpretado com frequência em uma direção que nos leva a um arquétipo feminino que muito me incomoda: a mulher como mistério. A maior parte dos clássicos mitológicos e textos sobre ocultismo foram escritas por homens e associam o mistério à mulheridade. Afinal, somos um mistério pra quem? Entre nós, não somos. Temos conforto no que é subjetivo porque fomos criadas pra ter intimidade com as emoções ao invés de negá-las. Porém a mulher histérica é a que sente demais, frequentemente eram - ainda são - interditadas no “depósito das mulheres que incomodam”. Ver força na sensibilidade, lembrar do titulo do livro de Angélica Freitas: “Um útero é do tamanho de um punho”.
Pintura de Emygdio de Barros, óleo s/ tela, 1948