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Foto do escritora palavra solta

à festa depois do fim

por Daniel Grimoni (autor convidado) sobre o livro "Haverá festa com o que restar", de Francisco Mallmann




O poeta Francisco Mallmann com sua bandeira "América é marica"



Querido, te escrevo porque li seu livro de poemas outra vez e agora, veja bem, tenho muitas perguntas: tantas que eu não saberia por onde começar. Arrisco, então, começar pelas suas palavras:


não sei se queria ser homem

não sei se queria ser mulher

não me perguntaram

não sei se queria estar entre

duas coisas tão frágeis duas

ideias que se desfazem na vida

nesse dia camisa água céu azul

sandálias velhas e café com muito

açúcar paisagens da américa do sul

não sei se gostaria de alimentar

assim os três amores que agora tenho

que dividem espaço no peito

quando empresto rosto ao que chamam

delicadeza dizer palavras em português

justificar os sentidos dos ofícios

a que estou me dedicando não sei


Elas também vivem, aqui, essa desorientação. Algo que, para além de dúvida, é ainda uma percepção da fragilidade (fratura?) exposta das categorias; e do gesto de nomear, que você traz à tona para que não continue despercebido.


Mas é verdade que tenho comigo algumas ideias, anotações. Se alguém me perguntasse o que estou pensando, me pedisse uma perspectiva sobre o que li, eu diria assim, bem formal: em haverá festa com o que restar, Francisco Mallmann pratica uma escrita da ambiguidade e da contradição, borrando a distinção entre o que é intimidade e comunidade, poesia e ensaio, corpo e cidade; borrando os gêneros, os tempos, as categorias, as vozes.


Se tivesse mais tempo, respondendo à tal pergunta, diria também que nesses poemas, nos quais você perpassa o amor, a revolta e a incerteza, acontece uma coisa que, antes, eu gostava de imaginar como uma diluição de fronteiras — “tanta coisa depende de quantos / passos você consegue dar / depois de cruzar / linhas imaginárias”, você diz.


Não é que tenha deixado de gostar dessa ideia, mas hoje percebo que vai um tanto além: quando você abre os poemas para as contradições do mundo, mesmo que algumas fronteiras se mantenham, mesmo que nem a todas seja possível diluir, o texto ainda se expande pra uma multiplicidade possível. Encontram-se e praticam-se as possibilidades de mundo de uma forma que não constrói um caminho do meio, uma síntese, mas uma convivência de opostos, diferenças — inclusive os nossos opostos, as nossas diferenças. Sem negações, embora nem tudo deva ser cultivado.


Ou seja, Chico: liberdade. Um ensaio pra liberdade, ao menos, se o peso da palavra ainda nos assustar um pouco. E também a urgência da insubordinação.


Isso tudo me aparece quando você escreve, assim pequeno, como um rastro:


meu corpo também guarda o gesto contrário


Cai a ficha, digamos assim. Só que alguém (você, o poema, a linguagem?) escondeu o jogo nesse verso, nesse pequeno texto, não é? Porque é também o poema que diz “meu corpo”, ou pode ser. O corpo do poema também guarda o gesto contrário: e então o seu livro se torna um terreno movediço, incerto, porque agora é preciso reparar nisso, ter suspeitas.


Em um texto que escrevesse sobre seu livro, eu diria que a contradição é também um aspecto formal dos poemas em haverá festa com o que restar, um dispositivo de escrita, na medida em que diferentes tipos de discurso se alternam ao longo do livro e, às vezes, ao longo de um mesmo poema, mais extenso. Trata-se de uma linguagem que oscila entre versos ensaísticos, versos íntimos, versos feitos a partir de recortes de cenas ou da escuta e colagem de vozes que, atravessando o poema, acumulam-se nesse cenário de ambiguidade e dúvida.


Apesar de a dúvida por vezes gerar angústia, ela não paralisa, pelo menos não para sempre. Apesar de parecer que algo como uma revolução precisa de certezas para caminhar, a revolta convive, nesses poemas, com uma hesitação que surge da ambiguidade, da diversidade, do reconhecimento radical oferecido às contradições, à falta de garantia e ao fato de que nenhuma dessas coisas deve interromper o movimento de vida de um corpo — de corpos juntos, vidas juntas.


Enfim, querido, você deve ter entendido que não é para te falar sobre seus próprios poemas que escrevo: é para que você saiba em que rua me atravessaram. Essas são algumas coisas que anotei, que seguem reverberando. Mas já passou da hora de falar da urgência, você diz, “desentocar corpo e grito”. São os homens, a língua dos homens, o fracasso do amor, a guerra, o exercício de memória para sustentar a vida diante da morte — essa que a todo momento pode dar as caras.


E então fico pensando, com você, que a urgência está também numa prática de vida diante da sempre-quase-morte: não amar só depois da guerra, mas também durante, hoje, agora. E que amor e revolta estão lado a lado (ou corpo a corpo) no seu livro, principalmente porque o amor não é apenas aquilo que se vive no íntimo, encontro de peles, mas é ainda uma força de comunidade e coletividade.


(aqui ninguém vai ser morta digo segurando

a mão das minhas amigas

aqui ninguém vai ser morta e então

brindamos na calçada

com copos de plástico

nada de tim tim o som é outro

tenho rasgado copos enquanto a polícia

fecha outro bar

nada sangra e o que escorre é a bebida pela fenda

de um material reciclável

que jogamos no lixo antes de voltarmos

cada um para sua solidão)


Essa parece ser a sua voz, a que diz e repete “aqui ninguém vai ser morta”. Mas existem muitas outras vozes no seu livro, você sabe, citadas, entreouvidas, atravessadas, frequentemente em cruzamento. Encontro também aí, nesse exercício de escuta e abertura, aquele amor que aponta para um estarmos-juntas, que atua para um tipo de insistência, de permanência. Isso, ainda que estejamos no terreno movediço — “também aí / transitório”, e, portanto, toda permanência seja também um ensaio para as continuações depois do fim, “uma espécie de promessa / começo de outra coisa”.


Agora, o amor nem sempre é possível, não é? Mas é verdade que isso você não esconde: pode ser o caso de guerra e destruição, muitas vezes. Pode ser o caso da violência horrível que derruba o amor de quem é posta às margens, de quem transita entre as categorias da “compulsão normativa”. Ou de quem, outra vez, insiste, rompe, irrompe. Como os seus poemas também insistem, vez ou outra, quando se demoram em uma questão, explorando com mais fôlego, a partir de perspectivas e possibilidades diversas.


Eu digo que você insiste porque, nesses poemas, como em "trinta bichas vivas", ou em "eu devo ser um ser do meu tempo", acontece um jogo entre repetição e variação, certo? E isso eu vejo como uma insistência: o poema experimenta e volta a experimentar seu ponto de entrada de forma múltipla, abrindo cada vez mais as possibilidades de sentido — quanto mais diversas, parece que mais apontam para uma incapacidade de esgotamento da questão. E também da vida, é claro.


eu devo ser um ser do meu tempo acho que sim

eu provavelmente já compartilhei

mentiras na timeline eu já chorei na timeline

eu faço meu próprio pão

uma receita que aprendi na televisão

[...]

eu devo ser um ser do meu tempo e

se eu for arrastado outra vez eu gostaria de

ao menos saber o nome dos fenômenos que me tornam motivo de ojeriza e rejeição

[...]

eu devo ser um ser do meu tempo já que sigo

fazendo a manutenção de um peito em susto

[...]

eu devo ser um ser do meu tempo cansado

e insistente

que nasceu estrangeiro a todas as línguas e linguagens

e que encontra na poesia falada em um

português terceiro mundista falho e insuficiente

um buraco onde tudo pode

começar e terminar

outra vez


Chico, uma incapacidade de esgotamento da vida. Acho que percebo isso no seu livro. Não à toa esse título que você deu, muito bonito. Até esses dias, me parecia uma coisa repleta de convicção, uma postura meio esperançosa — ou talvez não esperançosa, que essa palavra passa um pouco a ideia de esperar, braços cruzados, que as coisas se resolvam. Parecia falar de uma sobrevivência possível. Com vida aberta, não pequena. Alegria depois da guerra, mesmo nós aos pedaços; o que seria uma profecia ingênua pra algumas pessoas, certamente, e pra outras poderia ser uma constatação bem recebida.


Mas você nunca disse quem estaria nessa festa, não é? Um movimento de destruição ou de batalha, e os escombros não serão apenas dos muros, ou dos inimigos, ou mesmo das próprias armas. Morte e vida não se separam.


Esse risco é onde pisamos: brilho e apagamento, força e vulnerabilidade, revolta e afago. As ambiguidades que você cultiva e nos chama a observar. Pero ya que estamos aqui, bailemos, certo? Ou, como você diz, “à parte isso / com isso / mesmo assim // cá estamos”. Fico contente de saber que haverá festa. Espero te encontrar nela ainda muitas vezes, querido: e que não sejam apenas nossos os escombros, mas especialmente dos muros à nossa volta: um beijo.


Daniel G.

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